Folha de S. Paulo


Caçadores clandestinos dizimam a fauna do Vietnã

O caçador Luc Van Ho se esgueirava pela mata fechada, pisando quase sem ruído no leito de bambus secos e folhas de melaleuca.

Luc, 45, saiu ao alvorecer da sua casa, um casebre coberto de palha de bambu na localidade vietnamita de U Minh, para verificar meia dúzia de armadilhas montadas junto a trilhas e canais.

Ele para numa dessas armadilhas, que está vazia. "Antes, a floresta era muito diferente", disse Luc. "Agora, os animais são tão poucos que a maioria dos caçadores está mudando de emprego."

Ainda assim, nas duas semanas anteriores, Luc capturou nove tartarugas de duas espécies diferentes, cinco cobras e dois raros abutres-do-Himalaia.

No passado, as caçadas de Luc costumavam ser pródigas, inclusive com a presença dos valorizados pangolins. Essa espécie, parecida com um tamanduá, porém dotada de escamas, está entre os mamíferos mais traficados do mundo. Luc trabalha com atravessadores que compram pangolins vivos por US$ 30 o quilo. Apesar de ter apanhado apenas dois espécimes em 2014, o preço compensa o esforço de perseguir esse animal.

"Os pangolins estarão extintos em breve", admitiu Luc.

Ele é um dos milhares de caçadores clandestinos que dizimam a fauna do Vietnã, que possui uma enorme biodiversidade. Os rinocerontes do país já foram extintos, e, na melhor das hipóteses, sobram pouquíssimos tigres. Mesmo espécies menos conhecidas, como tartarugas de casco mole e civetas, são procuradas para serem usadas em medicamentos tradicionais, pratos típicos, troféus e como animais de estimação.

O tráfico de animais silvestres é um dos maiores mercados ilegais do mundo, movimentando estimados US$ 19 bilhões por ano.

O Vietnã é um importante corredor de passagem com destino à China, com animais trazidos por terra de Camboja, Tailândia e Laos, por navio da Malásia e da Indonésia e por avião da África.

"Depois da China, o Vietnã é a próxima parada para tentar entender o que está acontecendo com o comércio de vida silvestre", disse Dan Challender, da União Internacional para a Conservação da Natureza.

O Vietnã também consome animais silvestres, especialmente aqueles que oferecem ingredientes para a medicina tradicional, como o chifre de rinoceronte, usado para tratar de tudo –da ressaca ao câncer. Carnes exóticas de animais raros são vistas como um luxo pela ascendente classe média local. "O pangolim costuma ser o item mais caro do cardápio, então pedi-lo é uma maneira óbvia de ostentar para amigos e colegas", disse Challender.

Em janeiro, as autoridades interceptaram mais de 7.500 tartarugas-nariz-de-porco, uma espécie protegida, na Indonésia. Também foram apreendidos um tigre congelado no Vietnã e 190 tartarugas da espécie ameaçada Geoclemys hamiltonii, em Cingapura. Em 2014, na África do Sul, 1.215 rinocerontes foram mortos por causa de seus chifres, uma cifra recorde.

O material apreendido representa, segundo estimativas, apenas de 10% a 20% do tráfico total de produtos derivados de animais silvestres.

A China recentemente aumentou o número de prisões e processos por crimes contra a vida selvagem, mas no Vietnã e em outros países os contrabandistas quase sempre escapam impunes. Comercializar espécies protegidas –ou qualquer animal capturado na natureza– é crime no Vietnã.

Mas caçadores como Luc, que diz nunca ter enfrentado problemas jurídicos, raramente são incomodados. As punições, quando existem, geralmente se limitam a pequenas multas.

Além disso, no país, grande parte dos animais interceptados pela polícia voltam ao mercado negro, vendida por funcionários públicos.

O cardápio do restaurante Thien Vuong Tuu, em Ho Chi Minh, oferece pangolim, urso, porco-espinho e morcego. O pangolim precisa ser encomendado com antecedência. O gerente leva o bicho vivo até a mesa e, em seguida, corta a sua garganta, para provar que a carne é fresca.

"O pangolim é muito popular entre a clientela, porque trata várias doenças", disse Quoc Trung, gerente do restaurante.

Numa noite domingo, dois homens francófonos pediram uma cobra-real. Os garçons trouxeram uma serpente grande, que se contorcia com a boca amarrada por um fio de plástico. Um dos garçons segurou a cobra esticada. O outro localizou o coração, cortou o réptil com uma tesoura e retirou com os dedos o órgão ainda pulsante. O sangue do animal gotejou numa tigela de cerâmica, para ser posteriormente misturado com álcool e bebido.

"O governo não permite carnes exóticas, mas temos as nossas fontes e boas ligações com a polícia", disse Quoc.

"A demanda é enorme, por isso precisamos supri-la."


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