Folha de S. Paulo


Em regiões pobres da África, mosquiteiros viram redes de pesca

Uriel Sinai/The New York Times
Fishermen drag mosquito nets across shallows at Bangweulu Swamp, Zambia, Aug. 21, 2014. The growing problem of mosquito-net fishing, which threatens stocks by scooping up too many small fish, is an unintended consequence of the successful distribution of nets to prevent malaria, one of the biggest and most celebrated public health campaigns in Africa. (Uriel Sinai/The New York Times)
Pescadores arrastam mosquiteiros no pântano de Bangweulu na Zâmbia

Aqui no pântano interminável, Mwewa Ndefi, se levanta ao amanhecer e começa a abrir um mosquiteiro.

Telas como a dele são vistas como uma das maneiras mais baratas e eficazes de combater uma doença que mata ao menos 500 mil africanos por ano.

Mas ninguém na casinha de Ndefi dorme debaixo de um mosquiteiro, nem mesmo seus sete filhos. Em vez disso, Ndefi costurou os mosquiteiros contra a malária recebidos por sua família e os joga no fundo dos lagos, para pescar.

"Sei que não é certo, mas sem estas redes não teríamos o que comer."

A pesca com redes feitas de mosquiteiros é um problema crescente em toda a África. Centenas de milhões de telas tratadas com inseticida foram distribuídas nos últimos anos.

Caminhões cheios de redes chegam a comunidades à beira d'água onde a população tenta sobreviver com equipamentos de pesca precários. De repente as pessoas têm redes leves, macias e surpreendentemente fortes –de graça.

"As redes vão diretamente das embalagens para o mar", disse a bióloga marinha Isabel Marques da Silva, da Universidade Lúrio, em Moçambique.

Uriel Sinai/The New York Times
Two men use a mosquito net in shallows of Lake Victoria to catch baby catfish to sell as bait, in Kenya, Aug. 25, 2014. The growing problem of mosquito-net fishing, which threatens stocks by scooping up too many small fish, is an unintended consequence of the successful distribution of nets to prevent malaria, one of the biggest and most celebrated public health campaigns in Africa. (Uriel Sinai/The New York Times)
Dois homens usam um mosquiteiro como rede de pesca no lago Vitória, para pescar peixe-gato

"Por isso a incidência de malária aqui é tão alta. O povo não usa as redes para afastar mosquitos, mas para pescar."

Mas os mosquiteiros, feitos de uma malha fina com furos menores que mosquitos, capturam muito mais criaturas que as redes de pesca tradicionais.

Cientistas dizem que isso pode colocar em perigo as populações de peixes, que já estão em risco e constituem uma fonte crucial de alimentos para milhões das pessoas mais pobres do mundo.

Brigas de soco acontecem nas praias de Madagáscar entre pescadores que temem que as redes vão acabar com sua fonte de subsistência e pessoas que dizem que morreriam de fome sem elas.

As autoridades do Congo estão confiscando e queimando as redes feitas de mosquiteiros, e em agosto o presidente do Uganda, Yoweri Museveni, ameaçou pôr na cadeia qualquer pessoa encontrada pescando com mosquiteiros.

Muitas dessas redes tratadas com inseticida são usadas nos mesmos lagos e rios de onde vêm a água para o consumo humano, provocando preocupação.

A maioria dos cientistas diz que o risco para humanos é mínimo, porque as dosagens de inseticida são baixas e os humanos metabolizam rapidamente um dos produtos mais comuns usados nos mosquiteiros, a permetrina.

Mas no caso de animais de sangue frio, é outra história. "Se você usa redes recém-tratadas com inseticida num rio pequeno ou baía no lago, é bem provável que mate peixes que não pretende matar", disse Dan Strickman, responsável sênior por programas da Fundação Bill e Melinda Gates, que investe fortemente em pesquisas e desenvolvimento no combate à malária.

Os fabricantes de mosquiteiros insistem que seus produtos não são perigosos. Mesmo assim, muitos trazem um aviso: "Não lave em um lago ou rio".

Perguntado sobre isso, Egon Weinmueller, executivo de saúde pública da Basf, importante fabricante de mosquiteiros, respondeu: "Queremos evitar qualquer forma de contaminação".

Ainda não se conhecem as dimensões do problema da pesca com mosquiteiros. "Em relação ao que enfrentamos, é um problema infinitésimo -talvez 1% do total", comentou Seth Faison, porta-voz do Fundo Global para o Combate à Aids, Tuberculose e Malária, que financiou a aquisição de 450 milhões de redes.

Uriel Sinai/The New York Times
A woman sits under mosquito netting with her young children who are being treated for malaria, at a medical center in the the village of Kirando, Tanzania, July 19, 2014. The growing problem of mosquito-net fishing, which threatens stocks by scooping up too many small fish, is an unintended consequence of the successful distribution of nets to prevent malaria, one of the biggest and most celebrated public health campaigns in Africa. (Uriel Sinai/The New York Times)
Mulher sentada sob um mosquiteiro com os filhos sendo tratados para malária, em Kirando, na Tanzânia

Mas 1% ainda seriam milhões de telas. E um estudo revelou que em vários povoados nas margens do lago Tanganika, dividido entre quatro países do leste da África, 87,2% das famílias usam mosquiteiros para pescar.

A Organização Mundial de Saúde diz que o fato de as mortes por malária terem caído pela metade desde 2000 na África se devem principalmente à adoção dos mosquiteiros.

Mas em áreas de pobreza eles viram muitas coisas: gols para campos de futebol, galinheiros, véus de noiva e mortalhas. Uma tela velha, que contém menos inseticida, pode ser usada para muitas finalidades.

Mas para a pesca, "os mosquiteiros novos são os melhores, porque não têm furos", diz David Owich, que pesca no lago Vitória.

No passado, cestas de junco eram a tecnologia principal usada para pescar nas planícies aluviais de Bangweulu, em Zâmbia.

Mas outro dia, quando um dos vizinhos de Ndefi foi olhar suas armadilhas para peixes, ficou claro porque os cestos deram lugar às redes: uma armadilha tradicional feita de juncos estava vazia, enquanto a armadilha ao lado, feita de mosquiteiro, estava cheia de peixinhos prateados.

"É uma questão puramente econômica", disse Carl Huchzermeyer, administrador de pescado. "A pessoa pode passar dois dias fazendo uma cesta de junco ou usar um mosquiteiro."

Pesquisas recentes mostram que as populações de peixes de Zâmbia estão minguando. Harris Phiri, funcionário do departamento de pesca, atribuiu o fato ao desflorestamento, ao crescimento acelerado e ao uso amplo de redes feitas de mosquiteiros.

"Os pescadores estão capturando peixinhos pequenos, que ainda não chegaram à idade adulta. Desse jeito as populações de peixes não vão poder crescer."

Anthony Hay, professor de toxicologia ambiental na Universidade Cornell, em Ithaca, Nova York, disse que os peixes podem absorver algumas das toxinas dos mosquiteiros, que serão ingeridas pelas pessoas quanto consumirem sua carne.

Na maioria dos lugares onde se pesca com mosquiteiros, as pessoas arrastam as redes na água rasa, precisamente onde muitas espécies se reproduzem.

Para Ndefi, a opção é simples, embora dolorosa. Ele espera sobreviver a surtos futuros de malária, mas sabe que não pode sobreviver sem comida.


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