Folha de S. Paulo


Conheça as mudanças de SP contadas por meio da evolução dos bueiros

A história de São Paulo está a seus pés. E você pisa nela todo dia, sem perceber que os bueiros escondem mais do que rios canalizados, ninhos de baratas e galerias subterrâneas.

Essas tampas de ferro fundido revelam, também, as marcas do tempo numa cidade que inaugurou sua primeira empresa de saneamento, a Cia Cantareira e Esgotos, em 1877, quando tinha só 30 mil habitantes (que não lotariam o estádio do Pacaembu).

Passados 136 anos, somos 11,8 milhões –sobre bueiros tão antigos que ostentam grafia anterior às reformas ortográficas dos anos 1940, quando as águas eram "pluviaes" e atendia-se ao "telephone", com "ph" mesmo.

Por três meses, a sãopaulo fez uma varredura por bairros das zonas leste, oeste, sul e centro expandido e documentou 120 tipos diferentes de bueiro.

Remontar as origens históricas dos antigos tampões não é simples: não há censo que aponte o total de bueiros. E muitas peças sumiram em obras viárias, como na abertura das avenidas Nove de Julho e 23 de Maio.

Por baixo do asfalto coexistem águas da chuva, esgotos, fios de telefone e fibra óptica, cabos de semáforos e de eletricidade. E quando precisamos visitar esse submundo, seja para desentupir um cano ou construir uma nova rede de comunicação, são essas as nossas portas de entrada.

Mas, afinal, o que é um bueiro? "As bocas-de-lobos circulares e com tampas de ferro, que servem para a drenagem das águas das chuvas, são os bueiros propriamente ditos", diz o professor de infraestrutura urbana da Faculdade de Arquitetura da USP, Ricardo Toledo. Popularmente, a palavra designa também poços de visitas para redes subterrâneas.

Em alguns casos, todo é cuidado é pouco. Por exemplo: alguns bueiros da Sabesp têm alta concentração de gases como o sulfeto de hidrogênio, derivado do resíduo de esgoto. Para saber se é possível descer para fazer reparo na rede, técnicos (sempre com roupas e máscaras especiais) podem abrir o tampão e ver se de lá saem baratas. Elas servem como "um indicativo" da pouca letalidade dos gases.

ÁGUA E ESGOTO

Antes dos anos 1870, não havia sistema subterrâneo em São Paulo. A população obtinha água em poços, rios, cisternas, tanques ou chafarizes. "Os escravos eram encarregados de despejar as águas sujas em rios e córregos", diz a historiadora Denise de Sant'Anna, da PUC-SP.

Alguns edifícios recebiam água encanada, mas bueiros eram raros. "Não havia um consenso se esse sistema deveria existir", diz o arqueólogo industrial Dalmo Dippold Vilar.

Temia-se que um buraco conectando os canos do subsolo com a superfície liberasse "forte odor", caso o esgoto não escoasse apropriadamente.

Não há registro de sequer uma tampa da pioneira Cia Cantareira. Mas ainda é possível encontrar tapa-buracos da empresa sucessora.

Entre 1892, ano em que o viaduto do Chá foi inaugurado no Anhangabaú, e 1898, o Estado assumiu o gerenciamento das águas com a Commissão (com dois "m") de Saneamento. A companhia tratou de espalhar alguns bueiros pelo Bom Retiro.

A urbanização avançava na região após a abertura da Estrada de Ferro São Paulo Railway (hoje Santos-Jundiaí), em 1867, tomando o lugar de chácaras usadas por famílias abastadas para o retiro do fim de semana.

Na rua Prates, atrás do jardim da Luz, um bueiro da Commissão cumpre a mesma função há mais de um século: drenar a chuva das ruas.

Já no fim do século 19, São Paulo ganhou um novo código sanitário.

A norma baixada exigia que as casas tivessem torneiras, ralos, caixas d'água, privadas e banheiras.

Em 1898, surgiu a RAE (Repartição de Águas e Esgoto), chefiada por um personagem hoje conhecido pela rua que leva seu nome: Teodoro Sampaio.

Filho de um padre com uma escrava, o engenheiro baiano expandiu a rede sanitária paulistana. Tão comuns à época, exemplares antigos da RAE, com uma válvula hidráulica no meio, ainda repousam no largo São Francisco e na Vila Mariana.

Editoria de Arte/Editoria de Arte/Folhapress

TRANSPORTE E ENERGIA

Nem só líquido passa por debaixo desses lacres urbanos. No passado, o controle de transporte e energia da cidade de São Paulo pertencia à mesma empresa: a canadense Light, que chegou em 1899.

Em quatro anos, a empresa substituiu todos os veículos movidos a vapor e tração animal por moderníssimos bondes elétricos –mais velozes e sem gerar o mau cheiro das mulas.

A Light conquistou ainda o monopólio na geração de energia, numa época em que "bondes e eletricidade eram negócios interligados", afirma o professor da USP Angelo Filardo.

Com a recém-concluída hidrelétrica de Parnaíba, as ruas ganharam, em 1905, nova rede de lâmpadas elétricas.

A infraestrutura, afinal, precisava acompanhar uma cidade que beirava os 240 mil habitantes em 1900. "Antes da Light, havia apenas uma companhia, a Água e Luz, cuja pequena termelétrica deu nome ao bairro da Luz e nos deixou uma chaminé ao lado do prédio da Rota", conta Filardo.

O casamento entre bueiros de transporte e energia (que ocultavam quilômetros subterrâneos de fiações) terminou em 1947, quando a Light transferiu sua frota de bondes para uma empresa pública. A CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos) representaria a nova supremacia no asfalto: o ônibus.

Nos anos 1970, a Eletropaulo assumiu a rede de energia e decidiu manter o mesmo desenho de tampa –com riscos horizontais e verticais– usado pela Light desde seu primeiro bueiro aberto em SP, hoje pisoteado pelos pedestres do Pateo do Collegio.

As tampas de ferro da CMTC deram lugar às peças da SPTrans em 1993, com a privatização da operação das linhas feita pelo prefeito Paulo Maluf.

COMUNICAÇÃO

Talvez a maior mudança do século 19 para cá tenha ocorrido nos meios de comunicação. Em 1884, São Paulo inaugurava sua rede de telefones (11 anos depois, já seriam, pasme, 680 aparelhos registrados).

Quem se lembra do telégrafo ou do telex, operados pelo Departamento de Correios e Telégrafos (DCT)?

A rede possibilitava a troca de mensagens escritas usando impulsos elétricos em código morse. E tudo ficava oculto sob tampas do DCT (1931-1969), que ainda podem ser encontradas na praça da República.

O telefone começava a se popularizar. Maior empresa de telefonia fixa, a CTB (Companhia Telefônica Brasileira) montou extensa rede subterrânea. Mas demorava-se anos para conseguir uma linha própria, como relatavam jornais nos anos 1960. A empresa acabou sendo estatizada.

A Telesp assumiu a linha de sucessão sem desenrolar o problema. Serviu, ao menos, para difundir uma bela tampa de ferro fundido, com elaborado desenho de engrenagens.

Hoje, tampas das mais diversas empresas de comunicação esburacaram as calçadas: de operadoras de telefonia móvel à rede de fibra ótica, passando por TV a cabo e provedores de internet –nosso subsolo virou um enorme emaranhado de fios.

(QUASE) TUDO MUDA

Trocam as empresas concessionárias e as palavras, mas os discos de ferro continuam muito parecidos. "A princípio não há motivos técnicos para substituí-los, caso não sejam furtados ou danificados", diz o professor da FAU-USP Ricardo Toledo Silva.

Para avariar um tampão é preciso muitas décadas de trânsito pesado raspando a superfície –do primeiro automóvel que começou a circular por São Paulo, um veículo a vapor importado da França que pertencia à família de Santos Dumont, ao batalhão contemporâneo de sedãs japoneses.

Bueiros novos também são duros na queda, feitos para aguentar até 60 toneladas (o peso de um avião).

A Sabesp opta por substituir bueiros antigos, em bom ou mau estado. "Melhor trocar. Peças dos anos 1950, por exemplo, podem pesar 70 kg. Já as novas são leves e fáceis de abrir", diz o técnico de saneamento João Carlos Nepomuceno, na empresa desde 1988.

O "emagrecimento" das peças para 30 kg é possível graças aos novos materiais –como a gusa, liga de ferro e carbono, mais resistente do que o aço.

Eduardo Mosé é o diretor da Afer, uma das fabricantes de bueiros para empresas como Embratel e Sabesp. "Quando compramos sucata de ferro, vêm tampas substituídas ou mesmo roubadas e revendidas para sucateiros por menos de R$ 20."

As peças novas custam de R$ 250 a R$ 850. A Afer fica a 460 km de São Paulo, em Carmo da Mata (MG), onde nasce, após 15 horas de fabricação, um bueiro cuja vida útil supera os cem anos. Se vão durar até lá, aí são outros 500.

DÁ ATÉ ARTE

"Já vi bueiros japoneses com desenhos elaboradíssimos, mas gostei mesmo das figuras geométricas simples das tampas daqui", diz o artista Guto Lacaz. Ele tem um projeto com o grafiteiro Celso Gitahy, em que os relevos das peças são impressos, por decalque, no papel. Nomes das empresas são retirados das gravuras até restar "a forma pura do bueiro, quase construtivista".

A moda do filósofo Pedro Falcão e do programador Bruno Magrini é imprimir texturas das tampas em "mais de mil camisetas" (entre R$ 40 e R$ 80). A dupla, que se chama de Satisfação Garantida, caçou bueiros mundo afora. "Em Havana, um policial até tirou a blusa e pediu uma", conta Bruno.


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