Folha de S. Paulo


LUCIANO DE SOUZA GODOY

Um crime contra civil —quem julga?

Eduardo Anizelli/Folhapress
RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 28-09-2017: Blindados do exercito atrapalham passagem de onibus escolar na Estrada da Gavea que corta a favela da Rocinha. Favela volta ao cotidiano normal apos Tropas das Forcas Armadas comecar operacao que ja dura sete dias. (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress, COTIDIANO)
Blindados do Exército durante operação na favela da Rocinha, no Rio, em setembro

No dia 16 de outubro, foi publicada a Lei 13.491/2017, que —voltando aos idos da década de 90— devolve à Justiça Militar da União a competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares das Forças Armadas no país. Trata-se de uma novidade que destoa da leitura da Constituição atualmente.

Polêmica esta ampliação do conceito de crime militar.

A Justiça Militar é competente para julgar crimes militares, conforme a Constituição, atribuindo a definição ao Código Penal Militar. A hierarquia militar pede uma atuação especializada. Por isso, o Superior Tribunal Militar é formado por 15 membros, 10 deles oriundos de oficiais da ativa das 3 carreiras das Forças Armadas, sem a exigência de formação em direito.

Os crimes dolosos contra a vida de civis —desde a Constituição de 1988— não estão formalmente atribuídos ao julgamento das Cortes Militares.

Em 1996, a Lei 9.299 reformou o Código Penal Militar, para expressamente destiná-los à competência da Justiça comum, adotando-se o procedimento do Tribunal do Júri, nos termos da Constituição (art., 5o, XXXVIII).

Essa posição foi reforçada na reforma do Judiciário –Emenda Constitucional n. 45, de 2004, que expressamente firmou a competência da Justiça comum para julgamento de casos de crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares contra civis. A expressão é: "ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil".

Com a lei recém-publicada, voltamos algumas casas no tabuleiro da democracia, da igualdade e da pacificação social.

Primeiro, chama-me atenção a distinção dos julgamentos dos policiais militares e dos militares das Forças Armadas quando ambos atuam na mesma situação. Na repressão em favelas do Rio de Janeiro, havendo morte de um civil, aqueles serão julgados no júri popular, e estes pela Justiça Militar da União.

Segundo, transmite a ideia de uma suposta proteção aos militares da União no momento em que se clama por diminuição da impunidade e extinção de privilégios —a medida vai no sentido contrário e gera uma percepção de retrocesso.

Por fim, a lei desenterra lembranças dos períodos mais duros da ditadura militar, em que civis foram investigados, condenados e encarcerados com os julgamentos ilegítimos pela Justiça Militar. Recordações ruins para este momento.

Imagino que a constitucionalidade da nova lei será questionada no Supremo Tribunal Federal, que deverá avaliar se há violação à missão constitucional e especializada reservada à Justiça Militar da União.

As discussões já ocorrem há anos, e há precedentes formados na vigência da Constituição anterior favoráveis à competência da Justiça comum para os crimes dolosos contra a vida de civis.

Nos Comentários à Constituição de 1967, o jurista Pontes de Miranda diz que há um espaço a ser preenchido pela lei para conceituar os crimes militares.

E este espaço não é ilimitado —há um mínimo a ser definido, segundo critérios "dos povos cultos". Não pode e não deve a lei ampliar a competência da Justiça Militar da União sem critério técnico-jurídico.

As Forças Armadas não têm a missão constitucional de garantir a segurança pública; esse papel é da polícia. Nesse aspecto, a função das Forças Armadas é auxiliar, e sua atuação há de ser regrada e vista com isonomia às forças policiais no país, a fim de fortalecer cada qual no desempenho de seu papel constitucional.

LUCIANO DE SOUZA GODOY, 47, é professor da FGV Direito SP, doutor em direito pela USP e foi juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, por dez anos

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