Folha de S. Paulo


Marcus André Melo

Impeachment, maconha e guilhotina

Poderá ser impedido um presidente que fumar maconha no palácio? Para Cass Sunstein, professor da Harvard Law School, a resposta é não. O impeachment exigiria abuso no exercício do cargo. Sunstein contrasta esse caso com a manipulação do serviço da Receita Federal para perseguir inimigos.

Mas e se o presidente assassina um desafeto pessoal sem motivação política? Para o professor, neste caso, seria inconcebível sua permanência no cargo.

O que constitui justa causa é objeto de ampla controvérsia. Questões referentes à responsabilidade fiscal cada vez mais fazem parte desse debate, como documenta o livro "The Constitutionalization of European Budgetary Constraints".

Carvall

A própria democracia nasceu em um quadro de disputas sobre o uso do dinheiro público. A Guerra Civil Inglesa, espécie de primeira fase da Revolução Gloriosa, foi uma disputa entre o rei e o Parlamento envolvendo autorização legislativa para a tributação e o gasto.

O rei Charles 1º mandou cortar as orelhas do chefe da comissão de auditagem de suas contas no Parlamento. Teve o troco: acabou decapitado. O princípio moderno da soberania parlamentar foi assim instituído.

O impeachment é a forma democrática de responsabilização. Para Benjamin Franklin, era uma alternativa à prática histórica da decapitação. Caso o presidente se tornasse odioso ("obnoxious"), deveria ser submetido a um julgamento. O impeachment seria então "uma forma de domesticar, civilizar o assassinato". A guilhotina não tem lugar na democracia.

A tensão entre o impeachment como sanção ao crime e como punição ao desgoverno e à ilegitimidade é estrutural. O presidente americano Gerald Ford uma vez expressou que "um delito merecedor do impeachment é todo aquele que 2/3 dos membros da Câmara dos Deputados considerem que assim o seja, com a concordância do Senado, em qualquer momento da história".

Para Sunstein, a justificativa mais robusta para o impeachment ocorre quando há evidências de que a eleição presidencial está ancorada em corrupção. No Brasil, as questões do impedimento e da anulação de eleições são mantidas separadas e têm "loci" institucionais diversos: o Congresso Nacional e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), respectivamente. No entanto, essas esferas se comunicam, determinando a sorte do processo.

Contraintuitivamente, o efeito não antecipado de uma derrota do pedido de impeachment no Congresso é o aumento das chances de anulação das eleições no TSE. Trata-se de medida extrema, que só adquiriria legitimidade quando o próprio órgão de justiça eleitoral tivesse dado provas de independência.

A interferência do STF (Supremo Tribunal Federal) no processo da Câmara diminuiu a probabilidade de aprovação do impeachment, mas, paradoxalmente, cacifou o TSE (no qual três ministros são do próprio STF, um dos quais, Gilmar Mendes, será seu próximo presidente) para anular as eleições.

É provável que a anulação tenha mais apoio popular do que a punição dos crimes de responsabilidade.

A ênfase, entretanto, que é dada à mobilização nas ruas é excessiva. As "ruas" e as instituições de controle são substitutos, não complementos. Haverá tanto menos pessoas nas ruas quanto mais efetivas forem as instituições.

A questão relevante é o contrafactual: quantas pessoas estariam nas ruas se tais instituições não estivessem funcionando? Assim, o apoio difuso à anulação das eleição provavelmente será ainda maior, com manifestações menos ruidosas.

MARCUS ANDRÉ MELO é professor titular de ciência política da UFPE - Universidade Federal de Pernambuco. É coautor de "Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change" (Princeton University Press, 2016)

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