Folha de S. Paulo


José Paulo Cavalcanti

Corrupção na ditadura

Não são apenas civis, caro leitor, os envolvidos em corrupção. A democracia pode ser "o mais estúpido de todos os mitos", segundo Fernando Pessoa. Apesar disso, iguala tudo e todos, e por isso vale a pena.

Recentemente, um almirante da reserva foi preso sob a acusação de ter recebido R$ 4,5 milhões em propina de empreiteiras, enquanto presidente da Eletronuclear. A importância dessa prisão vai além de sua dimensão ética. Por ser disseminada a ideia de que os militares deveriam voltar ao poder porque "no tempo da Revolução" (assim dizia quem estava a favor do golpe militar) não havia corrupção. Lenda.

Pouco depois de 31 de março de 1964, o Brasil já conhecia sua primeira Comissão Geral de Investigações (CGI). Ainda não servia para combater a corrupção. Era apenas um instrumento para demitir servidores que tivessem vitaliciedade ou estabilidade e os que ficaram contra o golpe, nem seria preciso dizer.

A segunda CGI, de 1968, entretanto, foi criada para promover o confisco dos bens adquiridos de maneira ilícita, no exercício de função pública. Por serem muitos casos, era necessário fazer algo. O enriquecimento ilícito é definido como "aquisição de bens, direitos ou valores [...] sem idoneidade financeira para fazê-lo [...] ou quando não houver comprovação de sua legitimidade".

Essa segunda CGI tinha poderes para apurar quaisquer atos de corrupção –sem que se conheça hoje as investigações realizadas. No Recife, ficou famoso um general, diretor de banco do governo, que enriqueceu apostando com um empresário que seus empréstimos a juros simbólicos seriam liberados.

A evidência de corrupção ampla no período não para por aí. No início de 1969, nascia a Oban (Operação Bandeirante), pensada para ser o braço clandestino dos órgãos de segurança e responsável por parte das torturas e desaparecimentos.

O ato –informal– que celebrou sua criação deu-se em 1º de julho de 1969, contando inclusive com a presença de figuras das elites políticas, como Abreu Sodré e Paulo Maluf, e empresários de São Paulo.

Tanto foi o sucesso do empreendimento (na versão das forças de segurança) que, em fevereiro de 1970, o major Waldyr Coelho, chefe de Coordenação de Execução da Central de Operações da Oban, sugeriu ao Comando do 2º Exército a criação de uma Oban específica contra a corrupção (ACE 16.645""70, Arquivo Nacional), mas não teve êxito.

Naquele tempo, a ideia de combater a corrupção se limitava a punir só quem recebia dinheiro, sem atingir empreiteiros ou militares envolvidos. Talvez porque fossem velhos companheiros da ditadura. Hoje é diferente. Nossas prisões passaram a ser frequentadas por donos de empreiteiras e políticos.

Corrupção, pois, havia, sim. E muita. Maquiavel dizia que "a história é cíclica". Marx completou: "A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa". Agora, a história se revela, em seu cruel esplendor, como repetição do passado. Tragédia ou farsa, pouco importa.

No fundo, a corrupção é um desvio da natureza humana praticado indistintamente por civis e militares. Só que, durante a ditadura militar, não se sabia dos submundos do poder porque havia censura. Hoje, felizmente, a liberdade nos permite saber. Essa é a diferença.

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO, 67, advogado no Recife, integrou a Comissão Nacional da Verdade

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