Folha de S. Paulo


Ricardo Viveiros

Shakespeare, INSS e amor

As crises econômicas brasileiras sempre foram meio desacreditadas pela população que, em cada uma delas, trabalhou duro, criou oportunidades e continuou vivendo o dia a dia. Embora a atual crise esteja realmente preocupando e fazendo muita gente ficar em casa, fui ao teatro assistir à peça "Rei Lear", dirigida por Elias Andreato. O espetáculo me perturbou.

Tanto que perdi o sono em conjecturas sobre a vida. Seria a crise assombrando além do limite? Ainda não. O que provocou novas reflexões está no direito de viver a vida e, ao perceber que o seu final está chegando, realmente deixar de trabalhar e curtir, ao máximo, o que ainda pode restar de tempo útil.

A trama da adaptação gira em torno de suposta sábia decisão de um rei em se aposentar para ser feliz –pois é, acreditou ser possível. Abdicou ao trono, passando às três filhas e aos genros tudo o que possuía.

Estabeleceu, no entanto, uma condição. Viveria o resto de seus anos aproveitando os prazeres possíveis com um séquito de cem homens armados para proteger-lhe e residindo parte do tempo na casa de cada uma das filhas. Receberia, assim, sua justa pensão.

De cara, o rei se indispôs com a caçula, até então a filha preferida, que foi sincera ao ouvir a decisão da aposentadoria real.

Revoltado, tirou-a da partilha dividindo o reino em só duas partes. Tudo resolvido, dias depois partiu com seu séquito para a casa da primeira filha. E aí, como acontece com qualquer um de nós, seus problemas com a previdência começaram.

Mesmo animados pelos programas de motivação criados para a terceira idade, todos sabemos que ficar velho não é fácil. Muito mais em um país como o nosso, em que não se respeita quase nada. Ainda menos os idosos que causam trabalho e despesa aos que acham que eles em nada contribuíram para ter um tratamento digno na velhice.

Nas minhas inquietantes constatações geradas pelo texto de Shakespeare, atual aos 410 anos nessa desafiadora tradução e adaptação para monólogo do poeta Geraldo Carneiro, também está a discussão entre Congresso e governo federal quanto à sobrevivência de um já moribundo INSS. Quem pagou durante 30 anos suas contribuições mensais sobre até 20 salários mínimos, agora não recebe sequer 5 deles. E o futuro se desenha ainda pior.

Embora seja começo de tudo, por fim vem o amor. Um sentimento tão nobre, que nos envolve e motiva. Mas, a cada dia, é menos praticado do que aparece no falso discurso de algumas famílias e políticos.

Os asilos públicos para a velhice, como as cadeias e penitenciárias, estão superlotados. Os privados se tornaram grandes negócios sob o sarcástico letreiro "casa de repouso". Na verdade, são cemitérios de sonhos, tristes depósitos de frustrações, ansiedades e medos.

Velhos, idosos, tiozinhos, seja lá o nome que lhes derem, não querem um forçado e melancólico "repouso", assim como pretendeu o rei Lear, bem interpretado por Juca de Oliveira aos 80 anos. Querem merecer respeito e amor para, sem tanta responsabilidade com a felicidade dos outros, ainda alcançar mais algumas alegrias se aposentando do trabalho –não da vida.

RICARDO VIVEIROS, 65, jornalista e escritor, é autor de 32 livros, entre os quais "A Vila que Descobriu o Brasil" (Geração Editorial) e presidente da empresa de comunicação Ricardo Viveiros & Associados

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