Folha de S. Paulo


Alessandra Balles: Parece piada

Se é verdadeira a máxima "o cinismo destrói a eficácia", o momento é especialmente desanimador.

Enquanto estamos às voltas com escândalo da Petrobras, torneiras quase secas e árvores caídas que continuam nas ruas após dias, a desfaçatez de quem deve satisfações à população é suprapartidária, presente nas três esferas de poder.

A recém-empossada ministra da Agricultura, Kátia Abreu, do PMDB, foi enfática: "Latifúndio não existe mais". A afirmação virou piada, já que os números mostram outra realidade no Brasil.

Segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, propriedades com mais de mil hectares (tamanho equivalente a cerca de seis parques Ibirapuera) ocupam 45% da área voltada a estabelecimentos rurais.

No governo paulista, do PSDB, também parece estar tudo bem na pasta do secretário Alexandre de Moraes. "A situação da segurança pública em São Paulo é a melhor do país."

Completou: "Hoje, em São Paulo, não andam juntas a segurança pública e a sensação de segurança. É importante que se unam as duas. A segurança pública é boa e pode melhorar e a percepção de segurança teve uma piora".

Sabe, secretário, a sensação de insegurança não vem apenas do noticiário mas também das estatísticas. Em 2014, só até novembro, foram 286.523 roubos, maior número desde 2001, segundo dados divulgados pelo próprio governo.

O prefeito petista Fernando Haddad, que na metade do mandato está longe de cumprir metas que vão de readequação de calçadas (só 12%) a vagas em creches e pré-escolas (28%), explicou os atrasos em tucanês fluente: "O que você faz é deslizar o planejamento para a frente. Você vai deslizando as medidas tomadas".

Como explicar para a auxiliar de limpeza Patrícia Conde, do Capão Redondo, que, como a Folha mostrou, gasta com babá R$ 250 do seu salário de R$ 820 e espera há dois anos por vaga em creche para o filho, que suas expectativas vão ter que "deslizar"?

A suavização dos problemas não é só desrespeito com o cidadão, mas falha grave nas relações públicas. Numa época em que as frases publicadas pela mídia são amplificadas nas redes sociais, a população responde rapidamente a esse cinismo, no melhor estilo não me engana que eu não gosto.

Nesta semana, foi criada no Facebook a página Kátia Abreu Sincera, com posts como "Quer terra, índio? Então compra" e "Kátia Abreu, a mulher que de verde só tem o vestido", só para citar um exemplo em que o caminho foi o humor.

Não se trata de exigir a figura de um político "sincerão", que parece mais próxima da ficção, mas de querer que não seja desprezada de forma tão natural a gravidade dos desafios, ou seja, de não "deslizar" para debaixo do tapete, com tamanha facilidade, os problemas vistos a olho nu.

ALESSANDRA BALLES é editora da sãopaulo


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