Folha de S. Paulo


David Oliveira de Souza: O trabalhador e os acidentes evitáveis

Um trabalhador morre a cada quinze segundos no mundo por acidentes ou doenças relacionadas ao trabalho. Essa estimativa da OIT (Organização Internacional do Trabalho) nos lembra que, embora o 1º de Maio sirva para marcar os avanços conquistados pelos trabalhadores, muitos desafios ainda existem para o alcance de condições de trabalho dignas no Brasil e no mundo.

É muito comum que as mazelas do mundo do trabalho terminem nos consultórios médicos ou nas salas de emergências dos hospitais. É o caso do jovem motoboy com traumatismo craniano que correu demais para que a pizza chegasse em até trinta minutos; da balconista hipertensa que gastava quatro horas por dia em transporte público e nunca tinha tempo para ir ao médico ou se exercitar; do catador de papel atropelado com seu carrinho em via pública e que juntava quatro toneladas de papel por mês para assegurar um salário mínimo para sua família; do executivo enfartado que vivia à base de latinhas de estimulantes para dar conta de tantas reuniões e relatórios; e de tantos outros exemplos tão reais como esses na cidade ou no campo.

É preciso cuidado para não se responsabilizar exclusivamente as vítimas pelos incidentes de saúde relacionados ao trabalho. Poderia se culpar o motoqueiro por excesso de velocidade, a balconista porque negligenciou seu tratamento, o catador por ter sido imprudente ao atravessar a pista e o executivo porque se alimentava mal e não sabia administrar seu tempo. Mas a realidade é um pouco mais complexa.

São inúmeras as lembranças que tenho de pacientes que, ante as graves condições de saúde geradas direta ou indiretamente por sua inserção de trabalho, manifestavam profundo desejo e motivação para mudar, porém sentiam-se aprisionados, sem alternativas que os permitissem migrar para um ambiente de trabalho mais seguro e ainda assim garantir a sobrevivência de suas famílias.

Não se trata aqui de defender a ausência de pressão no trabalho, que pode ser inclusive benéfica, gerando motivação para se produzir e aprender mais. O problema é quando tal pressão torna-se incompatível com as capacidades do indivíduo. Em casos assim, o sofrimento do trabalhador, que deveria ser gerido através de processos de trabalho mais adequados e viáveis, acaba sendo administrado com anti-inflamatórios, antidepressivos ou ansiolíticos.

Também não é o caso de eximir o trabalhador da responsabilidade com o autocuidado. Porém, algumas perguntas devem sempre ser feitas: O trabalhador tem tempo em sua rotina para cuidar da saúde ou desfrutar de momentos de lazer? Recebeu treinamento suficiente para dominar sua prática? Tem equipamentos de proteção individual de qualidade? É respeitado de fato em seus direitos? Sofre assédio moral no ambiente de trabalho? Com que frequência essas situações são fiscalizadas e que tipo de auxílio está disponível?

A OMS (Organização Mundial de Saúde) é clara no documento fruto da Conferência Internacional sobre Saúde e Trabalho, ocorrida em 2011 na cidade de Haia, na Holanda: "Há muitas intervenções eficazes em prevenir riscos de saúde ligados ao trabalho, mas a cobertura e acesso a essas medidas, quando existem, ainda são muito limitadas". A tragédia que há um ano ocorreu em Bangladesh, em que mais de mil trabalhadores morreram soterrados, ilustra a assertiva da OMS. A morte dos oito trabalhadores nas obras da Copa do Mundo no Brasil, também.

Antonio José, Fabio Hamilton, Fabio Luiz, José Martins, José Antonio, Marcleudo de Melo, Raimundo Nonato e Ronaldo dos Santos, mortos em obras da Copa, nos lembram de forma dura que embora o Brasil deva celebrar o avanço na proporção de empregos formais na última década, ainda precisa reduzir muito os riscos que condições de trabalho indignas geram para tantas vidas.

Que nesse 1º de Maio possamos render homenagens a eles e a tantos outros que adoecem e morrem diariamente por causas evitáveis relacionadas ao trabalho.

DAVID OLIVEIRA DE SOUZA, 38, é médico e professor do Instituto de Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês. Foi diretor médico do Médicos Sem Fronteiras no Brasil (2007-2010)

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