Folha de S. Paulo


Crítica

Retórica sofisticada e limites de Obama se destacam em livro

Em plena epidemia de palestras com Power Point, uma coletânea de discursos de Barack Obama poderia servir como autoajuda em retórica, graças ao presidente-escritor e seu inspirado time de redatores.

Mas em "Nós somos a mudança que buscamos", organizada pelos jornalistas E. J. Dionne Jr. e Joy-Ann Reid, os discursos presidenciais expõem as complexidades de um líder que pensava em voz alta, revelando os limites às vontades do homem mais poderoso do mundo.

O livro traz nove discursos pré-Casa Branca, e outros dezoito dos oito anos de mandato (2009-2017).

Evan Vucci - 12.jan.2016/Reuters
O ex-presidente dos EUA Barack Obama, em seu último discurso do Estado da União, em 2016
O ex-presidente dos EUA Barack Obama, em seu último discurso do Estado da União, em 2016

Os desafios da América que elegeria Trump se acumulavam. Ao defender uma reforma imigratória, que nunca conseguiu aprovar, alertou que as "perturbações econômicas não virão do exterior. Virá do implacável ritmo de automação que torna obsoletos muitos bons empregos de classe média".

Só no segundo mandato, após a absolvição do homem que matou o adolescente negro Trayvon Martin, em 2013, deixou a cautela ao falar de racismo. "São poucos os homens negros neste país que não tiveram a experiência de serem seguidos ao fazer compras em uma loja de departamentos, e isso me inclui."

"A comunidade afro-americana também sabe que existe uma história de disparidades raciais na aplicação das nossas leis, desde a pena de morte até a legislação das drogas."

Ao ganhar prematuramente um Nobel da Paz, no primeiro ano de mandato, afirmou que "um movimento não violento não poderia ter contido os exércitos de Hitler. Negociações não são capazes de convencer os dirigentes da Al Qaeda a baixarem suas armas."

Disse que o uso da força "é um reconhecimento da história, das imperfeições do homem e dos limites da razão".

Além de várias autocríticas à política externa, raras na Casa Branca, provocou dogmas progressistas: "Os contribuintes não podem continuar subsidiando custos cada vez mais altos para o ensino superior". Enquanto congêneres ao sul do Equador parecem só ter foco em universidades, de cotas a bolsas e viagens, Obama ousa ao falar do fundamental:

"Cada dólar que investimos em educação de alta qualidade na primeira infância pode economizar muitos mais dólares adiante, melhorando os índices de graduação, reduzindo a gravidez na adolescência e até reduzindo a criminalidade violenta."

Na terra das aulas de expressão durante a alfabetização e dos concursos de debates para secundaristas, o ex-presidente é bem claro ao explicar de mudanças climáticas à necessidade de maior engajamento político.

"Se você está cansado de discutir com estranhos na internet, experimente falar com um deles na vida real. Se os políticos que elegeu o decepcionam, pegue uma prancheta, consiga algumas assinaturas e concorra você mesmo a um cargo público. Mostre a cara, entre na dança".

"Nós enfraquecemos esses vínculos quando permitimos que nosso diálogo político se torne tão desgastante que pessoas de boa índole sequer se dispõem a entrar para o serviço público; tão áspero e carregado de rancor que os americanos dos quais discordamos não são considerados equivocados, mas mal-intencionados".

Em diversas passagens, há uma lista dos fracassos legislativos de Obama. Projetos nunca aprovados para controlar mais a venda de armas de fogo, o aumento do salário mínimo, criação da licença maternidade ou a reforma imigratória mostram que frases bem construídas não bastam.

Nós Somos a Mudança Que Buscamos
E. J. Dionne Jr, Joy-ann Reid
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Mas até Trump já provou do imobilismo de Washington: não aprovou uma única lei, apesar de controlar Câmara e Senado.

Apesar da melancolia das páginas finais, que poderia ter sido seu governo e não foi, o conjunto ainda serve como antídoto à avacalhação diária da liturgia presidencial que o sucedeu.

É um alívio para quem está servido pelo cardápio de mesóclises, nonsense ou muletas verbais da moda. Ressignificação, narrativas, contemporaneidade e problematização não dão as caras no púlpito obamista.


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