Folha de S. Paulo


Campanha para incentivar italianos a terem mais filhos provoca repúdio

Um anúncio mostrava uma mulher segurando uma ampulheta, com a legenda: "A beleza não tem limite de idade. A fertilidade, sim." Outro retratava sapatinhos de bebê envoltos numa fita da bandeira italiana. Ainda outro anúncio mostrava um homem segurando um cigarro fumado até a metade. "Não deixe seus espermatozoides se esvaírem como fumaça", dizia a legenda.

Os anúncios faziam parte de um esforço do governo italiano para promover o "Dia da Fertilidade" em 22 de setembro –uma campanha para incentivar os italianos a terem mais filhos. Em vez disso, porém, geraram reações de furor, foram tachados de ofensivos e foram tirados de circulação depois de apenas alguns dias.

Remo Casilli/Reuters
A ministra da Saúde italiana, Beatrice Lorenzin
A ministra da Saúde italiana, Beatrice Lorenzin

O que conseguiram, contudo, foi desencadear uma discussão mais profunda e duradoura sobre o porquê de a Itália ter um dos índices de natalidade mais baixos do mundo e o que se pode fazer a esse respeito.

Críticos da campanha dizem que o problema não é uma falta de vontade de ter filhos, mas a ausência de apoio oferecido pelo governo e muitos empregadores, em um país onde a família ainda é a fonte principal de cuidado das crianças.

"Eu deveria ser um exemplo perfeito para uso na campanha, mas me sinto muito ofendida, mesmo assim", falou a jornalista Vittoria Iacovella, 37 anos, mãe de duas filhas, de 10 e 8 anos. "O governo nos incentiva a ter filhos, mas o principal sistema de bem-estar social que existe na Itália ainda é formado pelos avós."

DILEMAS

Muitas mulheres que trabalham e não contam com familiares para cuidar de seus filhos enfrentam um dilema, já que pagar por creche particular ou babá custa caro. Algumas também temem que sua segurança no emprego seja prejudicada quando precisam faltar ao trabalho para cuidar de seus filhos. Muitas empresas não oferecem horários de trabalho flexíveis para funcionárias que são mães.

A queda prolongada e lenta do índice de natalidade italiano coincidiu com o declínio econômico recente do país, fato que não surpreende. Mas as famílias italianas vêm encolhendo há décadas.

Em 2015, 488 mil bebês nasceram na Itália, o menor número desde a unificação do país, em 1861. A Itália tem um dos índices de nascimento mais baixos da Europa, com 1,37 filho por mulher, enquanto a média europeia é de 1,6 por mulher, segundo cifras do Eurostat.

Já na França, apesar de a economia também se encontrar estagnada, um sistema orientado às famílias garante uma rede de segurança social muito mais generoso, que inclui creche e subsídios para famílias que têm filhos. Ali as mulheres têm dois filhos cada, em média.

"As mulheres italianas têm os mesmos direitos que os homens, no papel", comentou Tiziana Bartolini, editora da "Noi Donne", uma das mais destacadas revistas feministas da Itália.

"Mas a realidade revela uma história diferente. Espera-se que as mulheres cuidem dos filhos. Se elas vivem em regiões com bons serviços ou em cidades pequenas, conseguem conservar seus empregos. Se moram em cidades grandes e caóticas e não têm família por perto, elas pensam várias vezes antes de engravidar. Ou então param de trabalhar."

CAMPANHA

O Ministério da Saúde lançou a campanha de fertilidade em 31 de agosto com um grupo de anúncios online. O objetivo era divulgar uma série de reuniões públicas no Dia da Fertilidade e incentivar os italianos a terem mais filhos.

"Ah sim, com certeza", pensou a professora Maria Scioli, 41 anos, que depende de sua família para cuidar de seu filho de 15 meses, quando viu a discussão.

"Eu adoraria ter um segundo filho", ela falou, "mas minha situação no trabalho me preocupa. Mesmo assim, me sinto sortuda. Penso em todas as mulheres da minha idade ou mais jovens que não conseguiram ter filhos e foram obrigadas a assistir àquele comercial ofensivo."

Mesmo o primeiro-ministro Matteo Renzi, cuja própria ministra da Saúde lançou a campanha, distanciou-se dos anúncios em uma entrevista dada à rádio, observando ironicamente que nenhum de seus amigos "teve seus filhos depois de assistir a um comercial".

Renzi disse que para elevar o índice de natalidade é preciso cuidar de questões estruturais, como creches e serviços.

ABONO

O governo italiano, sob a égide de Renzi, está tentando ajudar as famílias com um chamado "abono bebê" de 80 a 160 euros (US$90 a US$180) para as famílias de média e baixa renda, além de ter aprovado leis trabalhistas que flexibilizam a licença maternidade ou paternidade. Mas a Itália reserva apenas 1% de seu PIB aos benefícios de proteção social -metade da porcentagem média da Europa. Uma criança em cada três no país corre o risco de viver na relativa pobreza.

"A Itália tem uma combinação péssima: baixo índice de natalidade, baixo índice de emprego feminino e alto risco de pobreza infantil", disse Alessandro Rosina, professor de demografia na Università Cattolica del Sacro Cuore, em Milão. "Se continuar nesse rumo, o país vai enfrentar custos crescentes devido ao envelhecimento da população e uma dívida pública crescente."

"Defendemos nosso presente, mas não podemos definir o futuro", ele disse.

Vittoria Iacovella, a jornalista, contou que a escola de suas filhas fechava duas horas antes de ela sair do trabalho, destacando que as mães que trabalham fora "se frustram com a pouca assistência que o país oferece às mulheres".

Ela se sentiu tão ofendida com os anúncios de fertilidade que desabafou em rede social pouco depois de eles começarem a sair, e seus comentários viralizaram on-line.

A ministra da Saúde italiana, Beatrice Lorenzin, escreveu que a campanha do Dia da Fertilidade não era "uma convocação à reprodução", mas um dia para discutir "as questões de fertilidade que afetam 15% dos italianos". Ela cancelou a campanha imediatamente.

"Lamento que a campanha publicitária tenha sido mal interpretada por muita gente", disse a ministra. "Eu a tirei do ar para modificá-la."

Tradução de CLARA ALLAIN


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