Folha de S. Paulo


Opinião: Segredos e vazamentos

O deputado Ted Poe e eu não somos o que se poderia descrever como espíritos afins. Ele é um republicano do Texas da espécie que gostaria de encolher o governo ao máximo e depois afogá-lo na banheira, alguém que nega o aquecimento global, que é 100% a favor da Associação Nacional dos Rifles e adversário ferrenho do direito ao aborto. Vem de uma tribo política que vê a mídia mainstream como reduto de bolcheviques.

Mas Poe e eu temos opinião semelhante sobre uma coisa. Ele é o principal proponente na Câmara dos Deputados de uma lei que visa proteger jornalistas contra a possibilidade de serem forçados a divulgar informações sobre suas fontes governamentais, mesmo quando as fontes divulgaram questões de segurança nacional.

Para Poe e alguns conservadores que pensam como ele, uma lei que proteja as fontes confidenciais não é sinônimo de facilitar a vida da imprensa. Ela significa impor restrições a um governo grande que, sabidamente, já abusou de seus poderes em alguns casos.

"Não podemos deixar o governo abolir arbitrariamente a Primeira Emenda em nome de 'segredos de Estado'", declarou Poe no mês passado, reagindo à investigação feita pelo Departamento de Justiça nos registros telefônicos da agência Associated Press.

Graças em parte às reações de ultraje provocadas por dois esforços agressivos do governo para identificar as origens de vazamentos de informações --o caso da AP e o monitoramento eletrônico de um correspondente da Fox News--, hoje existe alguma esperança pequena de que o projeto de lei de Poe seja aprovado.

Como parte de sua intenção declarada de abrandar o Estado de segurança que herdou e intensificou, o presidente Barack Obama reativou a ideia de uma "shield law" (lei de escudo) federal --uma lei que protegeria jornalistas que se negassem a identificar suas fontes confidenciais. Escândalos que vieram à tona no IRS (a Receita Federal americana) e alguns outros órgãos federais lembraram a todos da importância de uma imprensa investigadora. E o caso da Fox News levou a ala conservadora de nossa imprensa nacional a ter um interesse mais pessoal no assunto (a âncora da Fox Megyn Kelly anda soando como Daniel Ellsberg nos últimos dias).

Uma "shield law" federal vem sendo uma meta das organizações noticiosas há décadas. Uma legislação desse tipo já foi aprovada duas vezes na Câmara dos Deputados com grandes maiorias dos dois partidos, e em 2009 uma versão dela foi aprovada pelo Comitê do Judiciário do Senado, mas atolou após a hemorragia de documentos classificados do grupo antissigilo WikiLeaks.

Muitas pessoas que respeito, entre elas alguns jornalistas eminentes, já questionaram a ideia de que o Congresso deva isentar jornalistas do dever cívico de prestar depoimento.

Seis anos atrás, Anthony Lewis --correspondente do "New York Times", colunista e jurista autodidata que morreu este ano-- temeu que dar a jornalistas o direito inviolável de proteger suas fontes pudesse dificultar a situação de uma pessoa que tivesse sido arruinada por alegações falsas e quisesse identificar seu acusador e buscar justiça.

Walter Pincus, veterano investigador do "Washington Post" que já foi alvo de intimações judiciais em busca da fonte de vazamentos, argumenta que uma "shield law" deixaria a imprensa em dívida com o Congresso e sujeita a um grau preocupante de regulamentação governamental. Ele insiste que o direito a proteger as fontes já existe na lei. (Em sua decisão de 1972 sobre o processo Branzburg vs. Hayes, a Suprema Corte não encontrou tal direito na Constituição, mas alguns juízes federais já o identificaram no direito consuetudinário ["common law"].

O fato de que todos os Estados americanos com a exceção do Wyoming oferecem algum grau de proteção de fontes confidenciais persuadiu alguns juízes de que esta é a vontade da sociedade, mesmo que o Congresso ainda não tenha assim decidido.)

Pincus e outros críticos se queixam de que uma imprensa farisaica se apressa a respaldar-se na Primeira Emenda, mas em muitos casos reluta em admitir que alguns segredos mereçam ser respeitados. Um olhar mais detalhado sobre dois casos que estão alimentando a indignação da mídia no momento sugere que eles possam ter alguma razão.

No primeiro caso, a Associated Press revelou no ano passado que a CIA tinha frustrado um complô terrorista para explodir um avião comercial. O furo inicial desencadeou uma enxurrada de detalhes delicados, enquanto outros órgãos de mídia corriam para levar o assunto adiante e a administração Obama se esforçava para contextualizar a história de maneira favorável a ela.

Assim, hoje sabemos o seguinte: uma operação da CIA, saudita e britânica infiltrou um espião na organização filiada à Al Qaeda no Iêmen. O agente se ofereceu para explodir um avião comercial, usando uma bomba nova projetada para passar pela segurança de aeroportos.

Em vez de fazê-lo, ele entregou a bomba a seus empregadores.

A pedido da CIA, a AP aguardou vários dias para publicar seu furo --aparentemente para que a CIA pudesse utilizar informações do infiltrador para localizar e matar um líder de alto escalão da Al Qaeda--, e então a notícia saiu em muitas manchetes. É difícil imaginar que o espião, tendo deixado de explodir o avião, algum dia fosse recebido de volta de braços abertos pela Al Qaeda. Mas a administração americana afirma que a revelação do papel que ele exerceu no mínimo colocou os terroristas em alerta máximo e dificultou infiltrações futuras. Em sua procura por quem vazou a informação, o FBI examinou secretamente dois meses de telefonemas em aparelhos utilizados por cem jornalistas da AP.

No segundo caso, em 2009 James Rosen, da Fox News, divulgou que, de acordo com as fontes da CIA em Pyongyang, a Coreia do Norte estaria cogitando em testar outro artefato nuclear. Não era uma notícia completamente inesperada, mas os federais temeram que sua divulgação alertasse os líderes norte-coreanos para o fato de termos a capacidade de interceptar suas conversas. Por isso, eles apreenderam os registros de e-mails de Rosen e rastrearam os movimentos de seu crachá eletrônico de visitante ao Departamento de Estado, para identificar sua fonte. O governo manteve sigilo em torno dessa vigilância, alegando que Rosen foi "auxiliador, simpatizante ou co-conspirador", violando a Lei de Espionagem. Rosen não foi indiciado, mas a linguagem empregada revelou uma mentalidade ameaçadora.

Penso que o Departamento de Justiça teve razões fartas para achar preocupantes esses vazamentos específicos de informações. No mínimo, ambos colocaram inimigos em guarda. Em nenhum dos dois casos a caça ao vazamento foi lançada para silenciar um informante ou ocultar delitos oficiais; pelo contrário, os dois vazamentos revelaram órgãos de inteligência fazendo seu trabalho. E, quando rastreou os responsáveis pelos vazamentos, o Departamento de Justiça estava fazendo o trabalho dele.

A questão é se os vazamentos justificaram invasões tão extensas das atividades dos jornalistas, sem aviso prévio e sem supervisão independente.

É exatamente esse o tipo de disputa que se propõe que seja resolvida por uma "shield law". Antes de obrigar um jornalista a depor na justiça ou entregar informações, o governo seria obrigado a encontrar os advogados do jornalista, na presença de um juiz. Os promotores teriam que apresentar argumentos convincentes para mostrar que não teriam outra maneira de identificar a origem de um vazamento, que não fariam uma busca tão ampla que invadisse outras operações de reportagem e que identificar a fonte do vazamento seria mais importante para o público que o valor que teria a divulgação da notícia.

Não está claro se uma "shield law" teria frustrado a vigilância governamental da AP ou de Rosen. Mas teria tirado dos promotores o poder de decidir de modo unilateral.

"Os juízes nem sempre são sábios", escreveu Anthony Lewis em 2007, endossando o tipo de acerto contido na medida proposta por Poe. "Mas, em nosso sistema, é neles que confiamos para avaliar interesses agudamente conflitantes."

Lamentavelmente, a atual versão da "shield law" submetida ao Senado, que foi modificada laboriosamente de modo a agradar tanto às empresas de mídia quanto aos defensores intransigentes do sigilo, possui uma brecha inaceitavelmente grande para os casos em que o governo afirma que a segurança nacional está em risco. Isso deixaria o governo com liberdade para agir como quisesse não apenas nos casos da AP e de Rosen, mas também em revelações genuinamente notórias como as da espionagem eletrônica sem autorização judicial, das prisões secretas e da tortura, que não teriam vindo à tona sem a contribuição de fontes confidenciais.

É claro que nada que o Congresso tenha chances de aprovar vai agradar aos absolutistas da Primeira Emenda. Alguns juízes tomarão o partido do governo após reflexão. Poderemos ocasionalmente ver um jornalista dotado de princípios preferir a prisão a obedecer a uma ordem judicial de divulgar uma fonte.

Mas eu me contentaria com uma lei como a de Poe, que exige que o sigilo governamental seja pelo menos comparado à nossa necessidade de saber o que o governo está fazendo e que confia essa decisão a alguém outro que nosso procurador-geral. Mesmo uma "shield law" imperfeita devolveria um pouco de equilíbrio à luta perpétua entre os segredos necessários e a prestação de contas democrática.

Tradução de CLARA ALLAIN


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