Folha de S. Paulo


Opinião: O sofrimento do Iraque só se intensificou desde 2003

Para mim sempre é doloroso escrever sobre o Iraque e Bagdá, a terra em que nasci e a cidade de minha infância. Dizem que o tempo cura tudo, mas, como a maioria dos demais iraquianos, hoje sinto dor ainda mais profunda. E, desta vez, as lágrimas por aquilo que já aconteceu se misturam a um medo paralisante de que o pior ainda esteja por vir: uma guerra civil aberta.

Diário de Bagdá - Dez anos depois
Leia mais sobre a invasão do Iraque

Passados dez anos da ofensiva de choque e pavor e da guerra lançada por Bush e Blair em 2003 –que se seguiu a 13 anos de sanções mortíferas e a 35 anos de ditadura de Saddam Hussein–, minha terra atormentada, um dos berços da civilização, está contemplando o abismo.

A intervenção irresponsável dos imperialistas e o governo ditatorial são responsáveis, juntos, pela morte de mais de um milhão de pessoas desde 2001. E no entanto, de acordo com Tony Blair e Madeleine Albright, antiga secretária de Estado norte-americano, "valeu a pena pagar esse preço". Blair, a quem a maioria dos iraquianos veem como criminoso de guerra, é tratado como celebridade pela mídia que compartilha de sua culpa.

Os iraquianos não conseguem acreditar que ele declare coisas como "sinto responsabilidade mas não arrependimento por ter removido Saddam Hussein". (Como se Saddam e seus sequazes tivessem sido simplesmente tirados de cena, permitindo que o povo construísse um Estado democrático.) Causa-nos raiva que Blair esteja construindo um império empresarial, e explorando seu papel para empilhar ainda mais crânios do que Saddam conseguiu.

Como exilado, sempre estive dolorosamente consciente dos crimes de Saddam, que, para mim, começaram com o desaparecimento de meu mais querido amigo, Hazim, nos anos de faculdade de medicina.

O povo iraquiano também está plenamente consciente de que Saddam cometeu seus principais crimes quando era aliado das potências ocidentais.

Pouco antes da invasão de 2003, escrevi o seguinte, em artigo para o "Guardian": "No Iraque, o histórico dos Estados Unidos fala por si: os norte-americanos apoiaram o partido de Saddam, o Ba'ath, na tomada do poder em 1963, o que resultou no assassinato de milhares de socialistas, comunistas e democratas; de novo em 1968, quando Saddam foi elevado ao posto de vice-presidente; em 1975, Washington ajudou Saddam e o xá do Irã a esmagar o movimento nacionalista curdo; em 1979, ampliou seu apoio a Saddam... ajudando-o a lançar sua guerra de agressão contra o Irã, em 1980; o apoio foi mantido ao longo do conflito (1980-1988), no qual um milhão de iraquianos e iranianos foram massacrados, e sob o pleno conhecimento de que Saddam estava empregando armas químicas e realizando ataques com gás venenoso contra os curdos e os árabes das regiões pantanosas no sul do Iraque; em 1990, ele foi encorajado a invadir o Kuwait; em 1991, o apoio foi mantido quando Bush [pai] subitamente suspendeu a guerra, exatamente 24 horas depois do grande levante que tomou o sul do país e o Curdistão iraquiano; e ele continuou a receber apoio, descrito como 'o mal menor', de março de 1991 a 11 de setembro de 2001, sob a capa de sanções mortíferas e da política de 'contenção'".

Mas, quando deixou de ser seu interesse apoiar Saddam, os Estados Unidos e o Reino Unido afogaram o Iraque em sangue. E essa guerra ainda não pode ser relegada à história –não para os iraquianos e os demais povos da região.

Nós ainda nem computamos o total de mortos, sem mencionar os feridos, os desabrigados e os traumatizados. Incontáveis milhares de pessoas continuam desaparecidas. Dos mais de 4 milhões de refugiados, pelo menos 1 milhão ainda não retornou à terra natal, e outro 1 milhão de iraquianos continuam a viver como refugiados internos. Em base quase diária, explosões e disparos continuam a matar inocentes.

Os EUA e o Reino Unido continuam se recusando a aceitar as consequências nocivas do uso de munições radiativas de urânio empobrecido, e os EUA negam que tenham empregado armas químicas em Falluja –mas os iraquianos veem as provas: o meio ambiente envenenado, o câncer e as deformidades. A falta de eletricidade, água potável e outros serviços essenciais continua a afetar milhões de pessoas empobrecidas e desempregadas, em um dos países mais ricos do planeta. As mulheres e crianças pagam o mais alto preço. Os direitos das mulheres, e os direitos humanos em geral, são reprimidos a cada dia.

E quanto à democracia, supostamente o objetivo de tudo isso? As autoridades de ocupação comandadas pelos norte-americanos fomentaram um "processo político" e uma constituição concebidos para semear a discórdia étnica e sectária.

Tendo fracassado em esmagar a resistência à ocupação direta, decidiram dividir para governar, a fim de manter sua presença no Iraque. Usando tortura, esquadrões da morte sectários e gastando bilhões de dólares, a ocupação conseguiu debilitar o tecido social e elevar ao poder uma classe dirigente corrupta que enriquece cada vez mais, e saliva diante da perspectiva de adquirir porção ainda maior dos recursos naturais do Iraque, quase totalmente hipotecados para companhias petroleiras e de construção estrangeiras.

As forças sectárias e étnicas em conflito, quer aliadas aos EUA, quer temerosas de suas influência, dominam as disfuncionais e corruptas instituições do Estado iraquiano, mas a embaixada dos Estados Unidos em Bagdá - a maior do mundo - continua a dar as ordens. O Iraque não é realmente um Estado soberano, já que está enquadrado pelo punitivo Capítulo 7º da Carta das Nações Unidas.

As ironias políticas abundam. Temos um governo supostamente controlado pelos xiitas, mas a maioria da população xiita iraquiana continua entre os mais pobres moradores do país. E temos um Curdistão iraquiano que é um Estado separado em tudo, exceto no nome. O governo regional do Curdistão mantém uma aliança com os EUA e a Turquia, uma nação que oprime impiedosamente o povo curdo. Também tem contatos cada vez mais fortes com Israel (ainda que se esforce para negá-los.)

Enquanto isso, o conflito pelo petróleo e território agrava as relações entre o Curdistão e o governo central. A ira popular contra a corrupção e as violações dos direitos humanos continua a crescer; há semanas temos visto intensos protestos na parte oeste do país.

Para agravar a crescente tensão no país, a guerra na Síria ameaça causar um conflito regional mais amplo, para o qual o Iraque e o Líbano seriam atraídos. As ações contra o Irã propelidas por Israel alargam ainda mais o escopo da guerra. A região noroeste do Iraque faz fronteira com a Síria, e foi lá que o general norte-americano David Petraeus criou as milícias Sahwa, ou "despertar", a fim de esmagar a resistência na região.

Há terroristas do tipo Al Qaeda em ação por lá, igualmente. Eles são aliados naturais dos terroristas da Frente al-Nusra, da Síria. A aliança informal existente entre os EUA, Turquia, Israel e os militantes, surgida na Síria, começa a se reproduzir no Iraque, com o ingrediente adicional de remanescentes do regime de Saddam. O pragmatismo norte-americano realmente não conhece limites!

Essas são apenas algumas das ramificações da guerra que os EUA lideraram no Iraque. Ela foi um desastre completo, com dimensões genocidas para o povo iraquiano, e continua a alimentar conflitos e a semear a discórdia na região.

No passado existia uma vigorosa força democrática que unia o Iraque, mas ela foi esmagada pelo golpe do Ba'ath, apoiado pela CIA (Agência Central de Inteligência), em 1963, e pelo regime de Saddam. O ressurgimento dessa força é agora a única esperança do povo iraquiano. Sem ela, como contaremos e lamentaremos os milhões de vítimas inocentes, curaremos as feridas e por fim construiremos um amanhã melhor e mais pacífico?

As perspectivas imediatas são assustadoras, mas escrevo estas palavras trazendo na mente a imagem de uma corajosa criança iraquiana. Eu o vi em Bagdá em julho de 2003, gritando raivosamente e erguendo o punho cerrado em um gesto de desafio diante de um soldado norte-americano cuja metralhadora estava ameaçadoramente apontada para o menino.

Com aquele espírito livre, e solidariedade entre as pessoas, um Iraque democrático e livre certamente ascenderá, forte e próspero.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: