Folha de S. Paulo


A batalha da Amazon pelo mercado do livro na Austrália

Paul Sakuma/AP
Livro que faz piada ao partido democrata americano é best seller na Amazon
Australianos demonstram resistência à compra de livros pela Amazon

Quando a cadeia de livrarias norte-americana Borders inaugurou sua primeira unidade na Austrália, do outro lado da rua em que fica a Readings, a mais conhecida das livrarias independentes de Melbourne, especialistas em varejo previram uma catástrofe para a velha e empoeirada loja, na concorrência com a reluzente rival.

Em vez disso, os australianos rejeitaram a Borders com tamanha veemência que ela terminou falindo.

E quando o assunto é a Amazon, que anunciou que em breve começará a operar seu modelo de vendas em massa e entregas centralizadas na Austrália, muitos australianos apreciadores dos livros não hesitam em dizer que esperam novo epitáfio.

"Quero derrotá-los", disse Mark Rubbo, coproprietário da Readings, falando sobre a Amazon, enquanto contemplava o imóvel que um dia abrigou a Borders, do outro lado da Lygon Street. "Não gosto da ideia de um monólito que devore tudo."

Determinar até que ponto a Amazon conseguirá impor seu controle sobre os hábitos de consumo mundiais é uma questão que preocupa varejistas A "loja de tudo", como o site é conhecido, agora tem cerca de 400 milhões de produtos em estoque, de creme dental a televisores e brinquedos eróticos, e diversas cadeias de varejo da Austrália enfrentaram queda nos preços de suas ações quando a Amazon anunciou seus planos de operar no país, em abril.

Mudar os hábitos de leitura dos australianos, no entanto, pode ser um desafio mais complicado. Livros são referenciais de grande peso simbólico, não só porque foram o primeiro produto pela Amazon e porque a empresa frequentemente os usa para ingressar em novos mercados, mas porque livros e livrarias estão estreitamente ligados à imagem que a Austrália faz de si mesma, e ao muito querido ecossistema de comércio local do país.

Todas aquelas experiências personalizadas que os consumidores das grandes cidades norte-americanas estão tentando reviver —o açougueiro artesanal e a barbearia local, a mercearia de produtos gastronômicos e a livraria da comunidade - jamais morreram na Austrália, embora os shopping centers tenham enfraquecido esse ramo do comércio.

O país continua a permitir que seus cidadãos adquiram salsichas, romances e xampu em três lojas diferentes, cada qual operada por um vizinho cujos filhos estudam na mesma escola em que os filhos do freguês.

Lojas de porte imenso continuam raras, e as livrarias independentes são fortes: suas vendas responderam por cerca de 26% do movimento do mercado de livros australiano em 2015, de acordo com a Nielsen, ante 20% no final da década de 2000. Essa proporção do mercado é mais de duas vezes mais alta do que a das livrarias independentes no mercado dos Estados Unidos.

Os românticos (e alguns livreiros) argumentam que os australianos simplesmente preferem o comércio local. Os cínicos (e alguns economistas) argumentam que muitos australianos são prósperos e complacentes, e que não saem em busca de alternativas mais convenientes, mas terminarão por um dia adotá-las e gostar muito delas.

Qualquer que seja a interpretação correta, uma coisa está clara: a chegada da Amazon será um teste de firmeza não só para categorias individuais de varejo como para a literatura e o modo de vida da Austrália.
"Nossa cultura, como todas as culturas, vem sendo varrida por influências externas", disse Rubbo. "Estamos lutando para defender nossa voz".

PEDIDOS

O primeiro centro de distribuição da Amazon na Austrália fica no cruzamento de diversas rodovias, cerca de uma hora ao sul do centro de Melbourne. Perto, há empresas de alimentação e armazéns da editora Penguin Random House, e no interior da edificação há espaço para milhões de produtos.

Organizadores sindicais dizem que observarão o local atentamente, para garantir que os novos contratados recebam o salário mínimo australiano de 18 dólares australianos por hora (US$ 14,50). Mas em uma visita recente, o armazém estava vazio. Havia apenas algumas estantes montadas no meio do piso cinzento. Os únicos trabalhadores visíveis eram operários de construção que estavam cuidando do acabamento de um banheiro.

O que virá a seguir é difícil de prever. A Amazon recusou pedidos de entrevista e não respondeu a e-mails com perguntas específicas.

Há outras cadeias de livrarias digitais operando na Austrália, entre as quais a Book Depository, subsidiária britânica da Amazon, e a Booktopia, uma startup que quase abriu seu capital no ano passado.

Tony Nash, presidente-executivo da Booktopia -que segundo dados da empresa detém uma fatia de 4% do mercado australiano de livros -, disse que a Amazon já tinha tornado todo mundo mais competitivo.

A Booktopia, por exemplo, agora emprega correias transportadoras, máquinas automatizadas de embalar livros e uma equipe de 150 pessoas para enviar os livros aos consumidores, às vezes com entrega no mesmo dia do pedido.

"Não é questão de preço", disse Nash. Especialmente em países com populações pequenas e altamente dispersas, como o Canadá e a Austrália, onde apenas 24 milhões de habitantes se espalham por um continente do tamanho dos Estados Unidos, "é tudo questão de logística", ele acrescentou.

Mas o isolamento, como os australianos sabem melhor do que a maioria das demais nacionalidades, pode tanto ajudar quanto atrapalhar.

Sean Guy, gerente da The Bookshop, em Darwin, a grande cidade mais setentrional da Austrália, diz que se ele morasse em uma comunidade mais isolada, como Alice Springs, no deserto australiano, "eu provavelmente acharia mais fácil entrar na Internet por cinco minutos e fazer meus pedidos do que ligar para a livraria local".

Mas para a maioria das demais situações, as livrarias convencionais funcionam perfeitamente bem.

"Jamais será possível derrotar a Amazon em preço, mas a pessoa pode economizar tempo indo à loja", ele disse. "E as pessoas gostam de apoiar as empresas locais".

Os australianos adquirem mais livros per capita do que os norte-americanos (com base em números de vendas compilados pela companhia de pesquisa Nielsen), e dedicam mais tempo à leitura.

Michael Heyward, editor-chefe da Text, uma editora independente que os trabalhos de diversos escritores australianos, tanto novatos quanto estabelecidos, entre os quais Helen Garner, disse que talvez a Austrália tenha criado independência suficiente para viver em paz com a Amazon.

"Eu gostaria de acreditar que podemos ter as coisas do nosso jeito mas também aceitar inovações", ele disse, em entrevista em seu escritório em Melbourne.

Mas apesar da placidez literária que ele demonstra - acompanhada pela mal disfarçada esperança de que a Amazon ajude a elevar as vendas de livros no país -, há preocupações mais amplas.

"Não deveríamos terceirizar nossas mentes para o narcisismo do algoritmo mundial", disse Anna Funder, autora de "Stasiland" e "All That I Am", em uma conferência de livreiros no ano passado. E ela não está sozinha em sua posição.

"As pessoas que trabalham no setor de livros são agentes de cultura e não apenas instrumentos de comércio", disse Tim Winton, autor de clássicos australianos como "Cloudstreet" e um dos escritores mais conhecidos de seu país. "Quando você remove seu papel como agentes de cultura e as reduz a instrumentos do capitalismo, a dinâmica muda".

Em entrevistas com mais de uma dúzia de livreiros, escritores, editores independentes e advogados especialistas em direitos autorais, dois cenários pessimistas emergiram.

Um, amplamente visto como o mais provável, teria a Amazon convencendo as grandes editoras australianas a oferecer grandes descontos nas vendas de seus títulos e prometendo entregas mais rápidas, o que derrubaria os preços de todos os livros e os royalties dos escritores, e poderia destruir o lado do negócio hoje controlado pelas livrarias independentes.

"A Amazon controla o processo de negociação", disse David Gaunt, coproprietário da Gleeebooks, de Sydney. "Se eles escolherem vender o novo livro de Richard Flanagan por US$ 9.99", ele acrescentou, em referência ao novo romance do mais recente ganhador australiano do prêmio Man Booker de Literatura, "nossas vendas cairiam a zero".

O segundo cenário apavorante, de acordo com livreiros e editores, é que a Amazon encontre uma maneira de inclinar as leis trabalhistas, tributárias e de importação da Austrália em seu favor.

Opções de ações concedidas a funcionários poderiam reduzir o passivo tributário, como a Amazon fez na Europa. O que mais a Amazon poderia fazer é uma questão que advogados e consultores estão estudando, enquanto fazem lobby junto ao governo australiano, que ao menos por enquanto parece determinado a proteger as empresas nacionais.

Em julho, um novo imposto sobre serviços digitais começou a ser aplicado a todas as compras online em valor de mil dólares australianos (US$ 780) ou menos. Netflix, eBay e Amazon serão afetados pelo tributo.

Os legisladores australianos também resistiram a apelos de economistas que fazem parte da Comissão de Produtividade do governo para que eliminem as restrições a importação paralela que vigoram no país. As regras essencialmente conferem aos editores australianos um monopólio nacional sobre qualquer livro que publiquem. Livrarias não podem importar livros de outro país se um título tiver sido publicado na Austrália em até 30 dias da data de lançamento do original, e se uma editora australiana puder entregar exemplares da obra em no máximo 90 dias.

Os críticos dizem que essas regras são protecionistas e tornam os livros muito caros.

Mas advogados especialistas em direitos autorais afirmam que essas restrições impedirão a Amazon de estocar seus armazéns na Austrália com livros baratos despachados do exterior. E elas são vistas pela maioria dos escritores como a fundação da cultura literária australiana.

INTERAÇÃO PESSOAL

Na loja principal da Readings, em Lygon Street, livros de escritores australianos têm lugar de destaque nas bancadas frontais e nas primeiras estantes que os leitores veem.

Na Riverbend Books, em Brisbane, outra livraria independente bem conhecida de editoras e autores, cerca de 60% dos livros disponíveis foram escritos por australianos.

A Amazon dará promoção semelhante aos autores locais? Publicará e imprimirá livros sob sua bandeira, na Austrália, ou conferirá mais importância aos vendedores de livros usados? O grupo solapará ou colaborará com o espírito comunitário que livrarias como a Readings representam?

"Temos muitas perguntas", disse Rubbo, 69, um homem quieto e casual, de intensos olhos azuis, que expandiu a Readings a sete locais em Melbourne e perto da cidade, nos últimos 41 anos.

Ele disse que desde a chegada da Borders, em 2002, a Readings e muitas outras livrarias reformaram seus elos com os escritores e leitores locais. Eventos se tornaram a norma e a Readings realizará 260 deles este ano.
As mais fortes das livrarias independentes, embora mantenham um jeito anos 90, em certos casos, com por exemplo estantes de CDs, também estão vinculadas a universidades e escolas, e aos conhecidos festivais de literatura de Sydney, Melbourne e outras cidades.

Muitos consumidores, embora abertos a adquirir alguns produtos da Amazon, estão satisfeitos com o status quo atual, na área de livros. "Gosto de ver o livro em papel, e da oportunidade de descobrir coisas que de outra forma você não veria", disse Sonya Theis, 24, que estava olhando livros na Readings alguns dias atrás.

Os escritores são ainda mais zelosos. "Se a literatura é uma religião, a livraria é a igreja", disse Alec Patric romancista premiado que trabalha na Readings. "É um equilíbrio delicado".

Os acordos da Amazon com editoras poderiam perturbar esse equilíbrio. Rubbo disse que vem insistindo junto a elas para que mantenham o mercado bem balanceado, sem conceder tratamento especial quanto a entregas ou preços à Amazon.

Suzy Wilson, dona da Riverbend, defendeu o mesmo argumento junto às grandes editoras australianas. E disse que a resposta que ouviu foi que não deveria se preocupar. "Na verdade, eles tentaram me animar", ela afirma.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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