Folha de S. Paulo


Crítica: Livro expõe genialidade e contradições de Henry Ford

O empresário Henry Ford (1863-1947) foi um gênio e também um homem cheio de contradições: abriu as portas de suas fábricas para homens de diversas partes do mundo e era antissemita; contratou um navio para levar pacifistas à Europa para tentar acabar com a Primeira Guerra e, anos depois, botou um capanga para liderar, a base do medo, sua indústria.

Mas talvez a mais forte dessas contradições fosse a obsessão de Ford com o passado. O homem que revolucionou a produção na indústria, que permitiu que o carro deixasse de ser uma extravagância de milionário, e sim um desejo do trabalhador, era o mesmo que fez seus funcionários escarafuncharem o jardim da antiga casa dos seus pais. O motivo: achar cacos da antiga louça da família porque ele queria uma exatamente igual, assim como queria a mesma mobília e os candeeiros iguaizinhos, apesar de a eletricidade já ter virado realidade décadas antes.

E foi com a mesma sagacidade desses empregados que Richard Snow construiu o seu "Ford - O Homem que Transformou o Consumo e Inventou a Era Moderna".

Não se trata de um livro de grandes descobertas, mas sim de lançar luz sobre as diversas facetas do industrial, trazendo detalhes saborosos, antes perdidos para a maioria dos leitores.

The Henry Ford an Ford Motor Company/AFP
Imagem mostra linha de produção de modelo da Ford de 1924
Imagem mostra linha de produção de modelo da Ford de 1924

Assim como seu biografado sabia que a simplicidade era uma das chaves do sucesso, o autor também opta pelo árduo caminho de um texto simples, sem rebuscamento, tornando muito mais agradável a sua leitura.

As únicas derrapadas foram em explicações sobre as invenções de Ford (momentos como "dois robustos triângulos formados por braços de torque que iam de junto dos cubos das rodas até o motor"). Mas, raras, pouco afetam a fluidez do texto.

Uma outra vantagem do livro é que ele usa a criação do Modelo T (conhecido no Brasil como Ford Bigode e grande revolução da montadora) como fio condutor, o que impede que a obra, relativamente curta para a importância do industrial (408 páginas), vire um grande almanaque de curiosidades -a sua investida no Brasil, com Fordlândia, é citada brevemente.

É possível ver a transformação de um Ford que, quando ainda trabalhador de uma empresa de eletricidade em Detroit, conseguia arregimentar seus colegas para que trabalhassem de graça e fora do horário de expediente na criação de um carro em um homem que não tolerava que nenhum funcionário ousasse abandonar o Modelo T. Mesmo quando as vendas não tinham a força de antes.

O livro também mostra a mudança do menino que odiava o trabalho na fazenda em um empresário preocupado que suas invenções fossem úteis e baratas para ajudar o homem do campo. É, portanto, uma obra sem maniqueísmos. Ford não é mostrado como herói nem bandido.

Ele era capaz de mais que dobrar o salário mínimo na sua fábrica para US$ 5 ao dia (cerca de US$ 119 em valores atuais), atraindo a fúria de seus rivais, que tinham de aumentar também o pagamento ou corriam o risco de perder seus funcionários.

Ao mesmo tempo, comprou um jornal que passou a publicar artigos como "A degradação judaica do beisebol americano", o que lhe rendeu elogios de Adolf Hitler, em seu "Mein Kampf".

No mundo de hoje, Ford, nem com toda sua genialidade, sobreviveria aos seus defeitos, mas o mundo de hoje também não seria o mesmo sem as virtudes.

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FORD - O HOMEM QUE TRANSFORMOU O CONSUMO E INVENTOU A ERA MODERNA
AUTOR Richard Snow
EDITORA Saraiva
QUANTO R$ 44,90 (408 págs.)
AVALIAÇÃO Ótimo


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