Folha de S. Paulo


Perfumistas querem comércio justo para "supersafra" do Haiti

O sol mal nasceu, e o suor já escorre pela testa de uma lavradora descalça que está escavando a terra com um enxada, em busca de uma preciosa raiz conhecida como a "supersafra" do Haiti.

O vetiver, uma forma de gramínea tropical, é um tesouro agrícola haitiano não muito conhecido, e produz um dos óleos essenciais mais procurados para a produção de perfumes finos.

"É um produto exportado", diz Rose-Marie Adona, 55, que tem seis filhos e trabalha em uma plantação de vetiver em uma encosta perto de Les Cayes, na costa sudoeste do Haiti."Eles produzem óleo com ela, e o cheiro é muito bom. Mas a compram de nós por quase nada".

A safra é uma das grandes fontes de emprego na região, onde lavradores extraem vetiver das colinas de solo seco há décadas, e sem grandes resultados a exibir de todo esse trabalho exceto a subsistência - pelo menos até recentemente.

A indústria de perfumes, por efeito da devastação causada pelo terremoto de 2010 que matou mais de 200 mil haitianos, está buscando fazer mais pelas pessoas cujo esforço e terras tornam possível destilar o aromático e florestal aroma do vetiver - que serve de base a fragrâncias famosas de grifes como Chanel, Guerlain, Estee Lauder, Christian Dior e Hermès.

Os grandes fabricantes de perfumes começaram a introduzir práticas de agricultura sustentável que compensem o dano ambiental causado ao arrancar da terra a raiz do vetiver. As mudanças darão mais dinheiro aos agricultores e melhorarão a qualidade do óleo extraído, além disso.

"FONTES ÉTICAS"

"A indústria da beleza usa produtos naturais, e isso tem impacto sobre a biodiversidade e as condições de vida das pessoas que produzem os ingredientes", disse Catherine Peyreaut, fundadora, em 2008, do Natural Resources Stewardship Circle (NRSC), organização de conservação que trabalha com 21 presidentes de companhias do ramo de perfumes a fim de promover a responsabilidade social no Haiti.

"Não é um impacto tão positivo, e todos eles sabem disso", ela declarou em entrevista telefônica de seu escritório em Grasse, perto de Cannes, França, onde a indústria europeia do perfume nasceu no começo do século 17.

A organização de Peyreaut está encorajando o setor de perfumes a trabalhar diretamente com os lavradores e destiladores a fim de estabelecer um sistema de comércio justo do óleo de vetiver, embarcado em tambores de 208 litros que atingem preços de até US$ 30 mil e US$ 40 mil quando vendidos para a indústria de fragrâncias na Suíça e França.

Duas companhias suíças, Firmenich e Givaudan, e a Flavors and Fragrances, de Nova York, os principais fornecedores mundiais de
matéria-prima de perfumaria, recentemente lançaram programas com agricultores que extraem vetiver no sudoeste do Haiti, entre os quais a organização de cooperativas locais e a introdução de novos padrões para elevar o rendimento das safras e reduzir a erosão do solo.

"A Firmenich compra óleo de vetiver no Haiti há décadas, e em 2010 desenvolvemos uma nova visão", disse David Shipman, presidente da Firmenich para a América do Norte. Ele disse que a empresa desejava fazer algo de positivo pela população rural.

A Firmenich está investindo US$ 1 milhão em seu programa de vetiver sustentável. No ano passado, concluiu a construção de uma escola para 500 crianças na remota aldeia agrícola de Debouchette, completa com uma biblioteca equipada com dois mil volumes, e ajudou a formar uma cooperativa de vetiver, permitindo que os agricultores negociem sob um preço mínimo de garantia.

Este ano, a empresa pretende levar eletricidade à escola e cavar um poço que ofereça água potável.

No ano passado, a Givaudan comandou uma iniciativa própria para obter produtos de "fontes éticas", com a Agri-Supply, maior produtora de óleo de vetiver do planeta, que opera uma destilaria em Les Cayes. A empresa ajudou a construir uma estrada que conecta três aldeias agrícolas nas quais a raiz é extraída, e criou uma cooperativa com 260 membros.

ÁGIO PARA AS MELHORES PRÁTICAS

Os lavradores da cooperativa viram alta de até 30% em sua renda, bem como melhoras de qualidade e rendimento, disse Rene Louis Maurice, 69, membro da cooperativa.

Os perfumistas que trabalham com as destilarias agora pagam ágio de 15% aos agricultores que sigam as melhores práticas do segmento, bem como lhes oferecem um preço mínimo garantido. As práticas incluem não interferir com as raízes de vetiver por pelo menos 12 meses e não extrai-las na estação chuvosa, de agosto a novembro.

Remover a terra das raízes antes de encaminhá-las às destilarias também é recompensado. "Estamos tentando educar os lavradores para a ideia de que a terra precisa ficar nas encostas para prevenir e erosão", diz Georges-Edouard Ellie, 50, gerente da Unikode, outra destilaria de Les Cayes.

O valor do vetiver está no peso de suas moléculas. Elas permanecem na pele por mais tempo, e oferecem o que o setor define como "a nota grave" na estrutura de um perfume.

Subitamente em moda por conta de seu status como produto que respeita as normas do comércio justo, o vetiver está atraindo ainda mais atenção do setor. A Estee Lauder recentemente criou um perfume fino para a grife italiana de moda Ermenegildo Zegna, "Haitian Vetiver", que é vendido por US$ 195 o vidro. O óleo também vem sendo usado em aromaterapia; diz-se que sua fragrância é relaxante.

"As grandes companhias de fragrâncias decidiram que voltariam à fonte e influenciaram a capacidade de produzir essas matérias-primas de forma sustentada", diz Trudi Loren, especialista em perfumes e diretora de desenvolvimento de fragrâncias na Estée Lauder Companies, entrevistada durante uma viagem ao Haiti no mês passado.

"É A CONTA BANCÁRIA DELES"

Os críticos dizem que o sistema de comércio justo pode não ajudar os agricultores tanto quanto eles precisam. Scott Freeman, pesquisador visitante da Universidade George Washington e autor de um estudo ecológico sobre o vetiver haitiano publicado em 2011, diz que eventos imprevistos muitas vezes forçam os lavradores a extrair raízes imaturas, para pagar por tratamentos médicos, mensalidades escolares ou até enterros.

"Os agricultores haitianos vivem em situação econômica precária", ele diz. "Quando se veem em um aperto, extraem mais vetiver. É a conta bancária deles"'.

Os agricultores das cooperativas podem ganhar até US$ 10 ao dia, o dobro do salário mínimo local. Ainda que o sistema de cooperativas esteja avançando, a Reuters encontrou meia dúzia de lavradores trabalhando em um campo perto de Les Cayes que disseram estar ganhando cerca de US$ 6 ao dia.

"Não podemos comer a raiz que extraímos, e o que ganhamos mal basta para alimentar nossas famílias", disse Adona. "O pessoal que cozinha as raízes é que fica com todo o dinheiro".

Nenhum dos trabalhadores diz ter visto ou cheirado óleo de vetiver em suas vidas.

Peyreaut, do NRSC, diz que é preciso fazer mais para expandir o sistema das cooperativas, que agora responde por entre 30% a 50% da produção das grandes destilarias, mas está satisfeita com os avanços. "Vimos grande mudança em 18 meses", ela diz.

"Todos os perfumistas querem melhorar os negócios. Estão no caminho certo. Podemos, juntos, mudar toda a área", afirma Peyreaut.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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