Folha de S. Paulo


Análise: O dilema de Davos: como ajudar a frágil recuperação mundial

À primeira vista, uma combinação de taxas de juros baixíssimas, ampla liquidez e crescimento econômico mais rápido deve sustentar a recuperação econômica mundial este ano.

Confiante em que as perspectivas da maior economia do planeta estão melhorando, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) abriu caminho para encerrar seu programa de estímulo e, depois de uma onda de tumultos nos mercados no ano passado, os investidores parecem estar preparados para essa mudança.

Mas os esforços do banco central norte-americano para retornar ao modelo anterior à crise ainda representam um grande salto no escuro, ao final de um período sem precedentes de injeção de dinheiro na economia.

Uma manobra mal realizada pode ameaçar a recuperação econômica em todo o mundo, o que representa apenas um dos dilemas que as autoridades econômicas da América, Europa e Ásia enfrentam ao se reunirem esta semana para o Fórum Econômico Anual, um evento anual em Davos.

Os protagonistas incluirão o secretário do Tesouro norte-americano Jack Lew, o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, o presidente da Comissão Europeia José Manuel Barroso e presidentes de bancos centrais como Mark Carney, Mario Draghi e Haruhiko Kuroda. Um "líder importante" da China também é esperado.

Em termos gerais, os riscos que eles enfrentam incluem crescimento mais lento que o esperado nos Estados Unidos, deflação na zona do euro, uma possível ausência de reformas estruturais no Japão e a carga de maus empréstimos da China. E sem dúvida existirão outros.

"Enquanto o Fed está tentando normalizar as condições monetárias a fim de evitar uma bolha de crédito, a China tenta implementar reformas no setor financeiro para pôr fim a uma bolha", diz Michael Spencer, economista do Deutsche Bank. "As coisas podem ameaçar a sustentabilidade do crescimento".

O balanço dos riscos para este ano parece pesar mais na direção dos Estados Unidos e da zona do euro, mesmo que os desafios de política econômica que o Japão e a China precisam enfrentar pareçam maiores.

Os investidores já incluíram diversas das notícias favoráveis em sua avaliação de preços, e a s ações europeias atingiram sua marca mais alta em cinco anos e meio na semana passada. O risco é que crescimento inferior ao esperado derrube os mercados e perturbe a recuperação mundial.

"O que poderia deflagrar uma correção seria um crescimento que se prove inferior ao já incorporado pelos mercados aos seus preços", diz Andrew Bosomworth, administrador sênior de carteiras da Pimco, a maior administradora mundial de investimento em títulos. "No caso das ações, os mercados já incorporaram aos seus preços previsões de condições econômicas bastante róseas".

O GÊNIO E O OGRO

O desafio para as autoridades econômicas dos Estados Unidos e da Europa é administrar as expectativas políticas em um momento no qual a inflação não vem se comportando de acordo com as expectativas.

Alguns dirigentes do Fed temem que os aumentos tépidos de preços signifiquem que a recuperação norte-americana não seja tão sólida quanto parece. Crescimento e criação de empregos deveriam produzir mais inflação.

Dada essa incerteza, os dirigentes do banco central norte-americano precisarão convencer os consumidores hesitantes de que mesmo que a era do relaxamento quantitativo esteja chegando ao fim, um aumento nas taxas de juros demorará a acontecer.

"O próximo desafio do Fed não é só como reduzir e eliminar o estímulo, mas sim como administrar suas taxas de juros e sua orientação quanto à política monetária futura", diz Sassan Ghahramani, presidente-executivo da consultoria SGH Macro Advisors, de Nova York, que presta serviços a fundos de hedge.

Caso eles não sejam convencidos, as taxas de juros de mercado, que muitas vezes definem o custo de captação, podem subir rápido demais e sufocar a recuperação nos Estados Unidos e em outros lugares. Caso isso aconteça, haverá fuga de investimento dos mercados emergentes, porque o capital norte-americano voltará para casa, atraído por retornos mais altos.

"É um corolário do relaxamento quantitativo e do dinheiro fácil que fluiu para os mercados emergentes", disse Ghahramani. "Agora que o relaxamento quantitativo e o dinheiro fácil diminuíram, de onde o dinheiro sairá? Sairá primeiro desses mercados".

Se a baixa inflação é um enigma nos Estados Unidos, na Europa os preços podem começar a cair.

Christine Lagarde, diretora executiva do Fundo Monetário Internacional (FMI), que palestrará em Davos na quinta-feira, expressou preocupação na semana passada.

"Se a inflação é o gênio, então a deflação é o ogro que precisa ser combatido de forma decisiva", ela afirmou.

Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu (BCE) —celebrado em Davos no ano passado como salvador da zona do euro— estabelece uma distinção entre deflação como queda prolongada dos preços e como forma de ajuste interno de preços em alguns países, para permitir que se tornem mais competitivos.

"O risco é de que as desvalorizações internas que precisam ser realizadas nesses países se transformem em deflação", diz Bosomworth.

Draghi está enfatizando a prontidão do BCE a agir, mas o banco central demonstra pouco apetite por realizar uma rodada de relaxamento quantitativo para estimular a economia, ao modo do Fed.

Enquanto isso, a ameaça da deflação afeta o bloco europeu.

A inflação na zona do euro é de 0,8% ao ano, no momento. Isso fica bem abaixo da meta de pouco menos de 2% estabelecida pelo BCE; na Grécia, a inflação é de quase 2% negativos.

Na Itália, a terceira maior economia da união monetária, a inflação é de apenas 0,7% e se Roma levar a sério a intenção de reduzir a imensa dívida pública do país —equivalente a 130% do PIB (Produto Interno Bruto)—, a inflação e o crescimento podem desaparecer, tornando ainda mais difícil o pagamento da dívida.

"Não podemos considerar os riscos de deflação de modo isolado", afirma Bosomworth. "Eles estão inteiramente vinculados à sustentabilidade da dívida".

REFORMAS DE ABE: HORA DE PRODUZIR RESULTADOS

No Japão, as autoridades econômicas obtiveram algum sucesso em seus esforços para combater a deflação, depois de anos de estagnação econômica.

O plano de reforma —apelidado de "Abenomics"— envolve combinar gastos fiscais, reformas econômicas e estímulo monetário a fim de tirar a terceira maior economia mundial de sua longa modorra.

Os esforços do primeiro-ministro Abe deram resultado, e o crescimento japonês ultrapassou o dos parceiros do país no Grupo dos 7, no primeiro semestre de 2013.

No entanto, alguns dirigentes econômicos de fora da Ásia consideram que a receita de política econômica de Abe é uma estratégia de alto risco sobre a qual eles têm dúvidas, especialmente porque o progresso nas reformas cujo objetivo é elevar o potencial de crescimento de longo prazo da economia vem sendo lento.

Uma pesquisa da Reuters com diversos economistas, na semana passada, encontrou consenso em torno da previsão de que as companhias japonesas não elevarão muito seus salários este ano, e a inflação ficará bem abaixo da meta oficial de 2%.

Com poucas mas notáveis exceções, as empresas estão cautelosas quanto a repassar aos seus funcionários parte dos ganhos obtidos em seus lucros, o que é visto como vital para as esperanças de Abe de promover crescimento sustentado.

Abe também ainda não cumpriu a promessa de reformas de longo prazo para combater o arrasto da população decrescente e cada vez mais idosa do Japão, e para reduzir a imensa dívida pública do país.

Apesar disso, a pesquisa previu que a economia continuará a se recuperar este ano, com as companhias e consumidores correndo para tentar se antecipar a um aumento no imposto sobre o consumo.

E, ao contrário da maior parte do mundo, o Japão não enfrentará reações adversas com a mudança de política dos Estados Unidos; seus exportadores devem até se beneficiar caso o dólar ganhe força à medida que as taxas de juros norte-americanas vierem a subir.

"O mercado japonês de taxas de juros não têm vínculo algum com o norte-americano, e por isso eles não serão prejudicados pela alta nos juros dos Estados Unidos, mas se beneficiarão da alta do dólar, e por isso poderão aproveitar a carona", diz Ghahramani.

Talvez ainda mais importante do que a combinação de políticas japonesa seja a capacidade da China para enxugar o excedente de crédito de sua economia sem causar um crash. A economia chinesa cresceu em 7,7% em 2013, mas se desacelerou no trimestre final do ano.

Há poucos sinais de um forte aperto na política monetária, mas a alta nas taxas do mercado de crédito e no rendimento dos títulos, nos últimos meses, indica que o banco central chinês tem o compromisso de remover o excedente de dívidas da economia.

"Rumores quanto a uma crise financeira iminente na China circulam há anos", disse Robert Wood, economista do banco Barenberg.

"Mas a China é capaz de lidar com esses problemas", ele afirmou. "O governo parece pronto a aceitar um crescimento mais lento do PIB desde que esse crescimento seja sustentável e não cause desemprego em massa, o que seria perigoso politicamente".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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