Folha de S. Paulo


Análise: Hora de repensar a sistemática de reajustes de transportes

Com todas as manifestações Brasil afora pela redução das tarifas de transportes urbanos, o momento é bastante oportuno para repensar profundamente várias questões relativas a esse setor.

Um primeiro ponto que merece um olhar mais atento é a sistemática de reajustes das tarifas. Do ponto de vista da inflação, as tarifas de transporte público fazem parte daquele conjunto de preços chamado de "monitorados" ou "administrados" (que respondem por pouco menos de 25% do IPCA apurado pelo IBGE).

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Também integram esse grande grupo as tarifas de energia elétrica e de água e esgoto, os combustíveis (gasolina pura, diesel e gás), os medicamentos, os planos de saúde, a telefonia fixa, os correios, os pedágios, entre outros bens e serviços.

Muitos desses itens possuem, já há algum tempo, uma sistemática relativamente clara de reajustes que busca recompor os custos intrínsecos a cada setor (de modo a manter o equilíbrio financeiro das empresas), mas também divide parte dos ganhos de produtividade com os consumidores/usuários.

Como muitos desses produtos têm por detrás concessões de serviços públicos, há também uma definição, pela respectiva agência reguladora (ou órgão semelhante), de taxas de retorno compatíveis com o risco associado a cada setor (risco de demanda, regulatório, dentre outros).

Os ciclos de revisão tarifária, nesses casos, geralmente são anuais. E eventuais mudanças nessas sistemáticas de reajustes precisam ser discutidas publicamente entre empresas e reguladores.

Não obstante, a definição das tarifas de transporte público no Brasil é, em boa medida, discricionária. Geralmente os reajustes correspondem apenas à variação de alguma medida de inflação total da economia (que não necessariamente caminha junto com os custos do setor) acumulada desde a última majoração.

E, quase sempre, esses reajustes seguem o calendário eleitoral: em ano de eleição municipal, é bastante raro ver aumentos relevantes nessas tarifas. Mas, logo após a votação, a fatura fatalmente chega, e geralmente bem salgada (refletindo dois anos ou mais de inflação acumulada).

Ademais, a lucratividade das concessionárias que operam esses serviços é uma variável que nem sempre é clara (as planilhas de custo são escondidas a sete chaves).

É preciso mudar isso, mesmo sabendo dos eventuais obstáculos políticos, associados especialmente ao fato de que a definição desses preços é de competência das prefeituras (caso dos ônibus urbanos) e dos Estados (ônibus intermunicipais, trens e metrô).

Zerar a tarifa, contudo, soa completamente despropositado, ao menos nas condições atuais: se os sistemas de transporte público hoje já são subdimensionados e possuem uma qualidade aquém do desejável, como ficariam com toda a população podendo utilizá-los gratuitamente?

Certamente um caos. E, ainda assim, a conta monetária teria que ser paga por alguém -seja pela redução de outros gastos públicos (investimentos, saúde, educação, dentre outros), seja pelo aumento da carga tributária (a sociedade brasileira topa?).

Para além dessa discussão sobre os reajustes das tarifas, é necessário também repensar toda a questão da mobilidade urbana, sobretudo nas grandes regiões metropolitanas brasileiras. A estrutura de incentivos deve ser alterada, de modo a priorizar o transporte coletivo em detrimento do individual (sobretudo o automóvel utilizado por apenas uma pessoa).

Essa mudança, por sua vez, teria que ser viabilizada principalmente por meio de mais investimentos no setor. Por que não gastar os quase R$ 50 bilhões previstos para a construção do trem-bala em centenas de quilômetros de linhas de metrô e de sistemas BRT (Bus Rapid Transit) e VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) nas principais capitais?

Outras medidas também poderiam ajudar a mudar essa estrutura de incentivos: subsídios cruzados (pedágios urbanos, nas regiões mais centrais das cidades, bancando ao menos parte das tarifas de ônibus e metrô); iniciativas como o Carpool de Los Angeles (em que há faixas preferenciais em vias arteriais para os automóveis que carregam duas ou mais pessoas); construção de ciclovias (e não apenas ciclofaixas de lazer), bem como de sistemas públicos de empréstimo de bicicletas (como o Velib parisiense); instalação de suportes para carregar bicicletas nos ônibus (como em Honolulu, no Havaí); táxis coletivos (como em Santiago, no Chile); dentre outras.

Ou seja, são muitas as boas ideias já testadas e bem-sucedidas em outras grandes cidades do mundo que poderiam e deveriam ser copiadas por nossas cidades.

Eu espero, sinceramente, que nossos governantes sejam inteligentes e aproveitem esse momento para começar a discutir essas questões e também para mudar algumas prioridades -será que vale a pena, do ponto de vista de retorno para a sociedade, investir tanto para desafogar a ponte aérea entre São Paulo e Rio de Janeiro?

BRÁULIO BORGES é economista-chefe da LCA Consultores


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