Folha de S. Paulo


PONTO CRÍTICO

'Os Dias com Ele' é filme corajoso sobre lacunas na relação com pai

O atual momento político brasileiro nunca foi tão favorável à revisão de nossa ainda recente e hesitante democracia. Em "Os Dias com Ele", impactante longa-metragem de estreia da jovem realizadora Maria Clara Escobar, recém-lançado em DVD *[Instituto Moreira Salles, R$ 44,90]*, essa reflexão é feita a partir de uma perspectiva pessoal e autobiográfica.

Filha de Carlos Henrique Escobar, filósofo, dramaturgo, ensaísta e integrante de movimentos de luta armada na ditadura, Maria Clara elege a figura do pai, ou mais exatamente a relação com o pai, como eixo de seu documentário.

Mas o empreendimento não é fácil. Escobar, amargurado com o fracasso das esquerdas brasileiras, exilou-se voluntariamente em Portugal há mais de uma década, optando pelo recolhimento, pelo anonimato e por uma vida rodeada de papéis e gatos.

Para Maria Clara, tendo atravessado o oceano, o mais difícil está por vir. Ela quer desse pai, com quem tem uma relação difícil e distante, uma reflexão sobre os silêncios, "os silêncios históricos e pessoais", o silêncio imposto pela ditadura e aquele que ela própria carrega em sua história.

Escobar diz não entender: "Eu não sei bem que filme é esse que você está fazendo. Eu tenho a impressão de que é um filme sobre você. Se for isso, é maravilhoso", mas "seja corajosa!". Ao que ela lhe responde: "Os filmes são sempre sobre nós". E ele então arremata: "Mas eu sou mais público, eu falo das questões de fora".

Divulgação
A diretora Maria Clara Escobar e o pai, Carlos Henrique Escobar, em cena de
A diretora Maria Clara Escobar e o pai, Carlos Henrique Escobar, em cena de "Os Dias com Ele"

Construído na tensão entre os âmbitos público e o privado, "Os Dias com Ele" é composto por testemunhos, entrevistas e conversas entre pai e filha, incorporando os momentos que antecedem e que sucedem esses diálogos.

Sobretudo nesses momentos em que Escobar não se sabe filmado ("Já começou?", pergunta algumas vezes), o filme aparece em disputa. Escobar quer roteirizar, quer ser construído como um personagem importante e público. Já Maria Clara faz questão de colocá-lo no lugar de pai, de personagem privado, e de reivindicar seu testemunho pessoal sobre a tortura. Escobar faz um teatro sobre ele; a filha responde com um filme sobre ela.

A disputa é interessantíssima e em nada mesquinha ou narcisística. Diferentemente da febre autobiográfica e do teor confessional que dão a tônica da cultura atual, "Os Dias com Ele" faz da opacidade do relato, da precariedade dos meios e das fraturas afetivas um lugar de confronto mas também de vital encontro.

Se "filmar é filmar relações, inclusive as que faltam", como afirma o crítico Jean-Louis Comolli, é porque aqui o cinema junta o que a vida separa, criando um espaço em que as lacunas, as distâncias e as disputas não são suprimidas, mas constitutivas. Eis aí a força política do filme. Como sabemos, as verdadeiras experiências democráticas são aquelas que abrigam o dissenso, e não as que impõem autoritariamente um consenso.

Tratando dos descaminhos do país e do trauma da segunda geração –os filhos dos militantes que cresceram marcados pela ausência e pelo exílio–, "Os Dias com Ele" não é um filme sobre a superação de uma filha traumatizada pelo abandono do pai, nem sobre a superação de um pai traumatizado pela tortura e pelo extravio de seu projeto revolucionário.

Tampouco é um filme que demanda reparação, como tantos filmes testemunhais cujo limite de ação é o gesto da denúncia. Na impossibilidade de superação e de reparação, "Os Dias com Ele" é sobre a separação, sobre a potência e a beleza de uma relação não conciliada (entre dois seres próximos e estrangeiros), que, ainda assim, acolhe o afeto e o enlace. Entre o pai e o país, o pessoal e o político, o eu e o outro, temos aqui a evidência de que a memória não se faz sob o signo da sucessão e da herança, e sim da disputa e do laço.

É preciso muita coragem para fazer um filme como "Os Dias com Ele". E é com essa coragem que a filha responde ao pai.

ILANA FELDMAN, 37, é doutora em cinema pela USP e desenvolve pesquisa de pós-doutorado em teoria literária na Unicamp.


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