Folha de S. Paulo


A foto, o pai e o rugido do leão

No dia 30 de maio de 2014, minha filha me mostrou, toda animada, uma fotografia que encontrou na internet. "É impressão minha ou esse cameraman da MGM se parece muito com o vovô Otis?" Assim que vi a foto, engasguei. Era a cara do meu pai. Bem, pelo menos seu perfil, a mesma postura, o mesmo nariz e as mesmas roupas que ele usava, incluindo o boné. Essa imagem da besta feroz rugindo antes de cada filme a fez lembrar de uma fotografia que eu tinha do meu pai de pé ao lado de uma leoa.

A possibilidade de aquele homem da foto ser meu pai invocou tantas histórias de aventuras para mim contadas por ele em algumas de nossas longas e frequentes caminhadas juntos e me fez perceber que havia muita coisa ainda sobre esse homem que eu não conhecia e, como ele não era o tipo de pessoa que se vangloriasse de uma lista de pessoas famosas que o conheciam, não estava surpresa com o fato de talvez ser ele na foto.

Arquivo pessoal
Otis Levy, mais tarde Otis Cavrell, ao lado de leoa, em foto tirada em algum momento entre 1946 e 1951
Otis Levy, mais tarde Otis Cavrell, ao lado de leoa, em foto tirada em algum momento entre 1946 e 1951

Eu estava acostumada com as histórias improváveis mas deliciosas que ele contava. Contou quando estava na guerra, locado em Arles, na França e, de uma só tacada, "quase" capturou Hitler. Seguindo uma pista passada a ele por alguma fonte duvidosa, ele partiu para ganhar a guerra. Para sua decepção, o tal homem era um padeiro, num refúgio recente numa aldeia vizinha e que teve o azar de se parecer com o Führer.

Após sua captura, o homem assustado se submeteu felizmente a um barbeiro. Mas, mais importante, seria com essa história que meu pai pararia para conversar livremente com bêbados, drogados e prostitutas no nosso bairro e como eles iriam cumprimentá-lo todas as manhãs a caminho do trabalho.

Comecei a estudar dança com oito anos, graças a uma dedicada tentativa de meus pais de me tirar de casa nas manhãs de sábado. Meu pai fazia cinema e TV, minha mãe era atriz, e estudou no Old Vic Theatre, em Londres.

Eu cresci nos anos 1960 dependendo do sistema de metrô de Nova York, subindo e descendo lances de escada cheirando a urina e me locomovendo por aquelas catacumbas de ferro. Eu me sentia num caldeirão de culturas. Por morar lá, eu me tornei consciente dos ritmos que acompanhavam cada paisagem cultural, uma vez que cada quarteirão parecia ter sua própria cor, sotaque e tempo.

Com a maneira do meu pai olhar a vida –como um filme–, cresci enfrentando-a como uma série de cortes apressadamente colados.

Nos anos 1950, meu pai e seus dois irmãos, já vivendo em Nova York, criaram um estúdio de cinema e frequentemente entrevistavam pessoas para filmes de notícias e propaganda. Surpreendentemente, a lista tinha nomes como Eleanor Roosevelt, Helen Keller e um jovem senador chamado Richard Nixon.

Meu trabalho como diretora da Cia. Domínio Público em "Posso Dançar Pra Você?"(2013) e "Suportar"(2014) é o exemplo de como meu pai me ensinou que eu poderia ler a poesia em um bando de pardais que passam sobre um telhado, ou numa criança brincando ao lado do corpo de um homem sem-teto dormindo ao lado de seu cachorro.

A poesia do cinema do meu pai alcançou uma parte da minha capacidade de recepção. E isso me abriu para ver a vida usando uma outra maneira de ligar imagens; como trabalhamos e organizamos isso, os fluxos e convergências de informações transitando de um elemento para outro, é a arte do ofício e a memória viva.

Embora meu pai nunca tivesse encontrado Hitler escondido naquela aldeia francesa, ou pudesse não ser ele naquela foto, ele foi a força que levou um ideal a encontrar um propósito na impossibilidade de uma missão. É dentro dessa esfera de otimismo e tantos ensinamentos do valor do comum e apreciação do espírito humano que eu danço.

HOLLY CAVRELL, 60, bailarina e coreógrafa americana radicada no Brasil, fundou a Cia. Domínio Publico e é professora do Departamento de Artes Corporais da Unicamp.


Endereço da página: