Folha de S. Paulo


Primeiro dia de aula na Síria

Ghina al-Imam tem seis anos e está usando prendedores de cabelo adoráveis, mas soluçava silenciosamente, com o rosto coberto de lágrimas, em seu primeiro dia de aula em Damasco, Os professores estavam discutindo se deveriam ou não ligar para a mãe da aluna - cujo número de celular estava cuidadosamente afixado por um alfinete à túnica azul da menina -, mas quando chegou a hora do recreio já haviam conseguido convencê-la a se unir às demais crianças no pátio.

Cartazes com rostos redondos sorridentes e pôsteres coloridos receberam os novos alunos esta semana. "Tudo está normal, ou tão normal quanto possível nas circunstâncias", disse Mona Hamoud, diretora da escola primária al-Samah bin Malek al-Khawlani. Mas o estabelecimento que ela dirige está superlotado - 1,35 mil alunos em 24 classes, média de 56 alunos por sala de aula. E as "pessoas deslocadas internamente" (PDI) - ou refugiados - respondem por 65% do total de estudantes.

Muhammad, que está começando a quarta série, voltou do Líbano, onde ele não estudava. Estava olhando deliciado para os lápis de cera, livros de exercícios e kits de matemática distribuídos em mochilas novinhas - vermelhas para as meninas, pretas para os meninos. Elas portam o logotipo da Unicef, a agência da ONU para a infância, que está desempenhando papel vital em garantir que educação gratuita continue disponível em um país dilacerado pelo conflito e cujos cidadãos fogem em grandes levas.

"Sim, estamos felizes com nosso primeiro dia de aula!", cantavam as crianças de seis anos de idade em árabe formal depois de uma apresentação animada feita por Ibrahim Farah, da Unicef, o coordenador de uma ambiciosa campanha de "volta ao aprendizado" em parceria com o Ministério da Educação sírio. Um menino, Ahmed, declarou com ar de extrema seriedade que queria ser médico. Outra criança dormia profundamente no fundo da classe.

Na Síria hoje, ecos da crise nunca estão muito longe. A intervalos frequentes, ouve-se à distância o estrondo de disparos de artilharia, que têm por alvo os rebeldes que bombardeiam Damasco com morteiros. Em al-Midan, o bairro ao lado, fica uma delegacia de polícia que foi alvo de um atentado suicida - e pelo qual governo e oposição se culpam mutuamente - nos estágios iniciais do levante contra o presidente Bashar al-Assad. Agora, barracas vendem frutas e legumes sob o viaduto do qual a cabeça e membros do homem que executou o atentado foram pendurados em um saco.

Não surpreende que haja forte ênfase no patriotismo. O nome da escola celebra a conquista da Espanha pelos árabes no século 7. A foto do presidente decora todas as salas de aula, acompanhada pela letra do hino nacional e pôsteres sobre os pioneiros do partido Ba'ath - o equivalente sírio dos escoteiros. As paredes externas da escola foram decoradas com elogios a Assad - "uma nação liderada por ele jamais se ajoelhará!" - e ao exército árabe da Síria, por "defender nossos lares".

Hamoud destaca a deterioração da economia e a superlotação nos abrigos de refugiados como maiores desafios que sua escola enfrenta. E, é claro, os perigos inescapáveis e rotineiros da vida cotidiana.

"Os problemas que vemos não são em geral educacionais, mas psicológicos, e se relacionam a medo e violência", disse Mariam Mahmoud, conselheira da escola. "Agressões são comuns - alunos que batem uns nos outros por conta do que viram na vida real e na TV".

Outras questões são menos evidentes;. À porta, Abu Muhammad e sua mulher parecem arrasados, por não terem conseguido matricular seus dois filhos. A escola tem boa reputação e, ao contrário de outras, opera em um turno só. O casal decepcionado não conseguiu fornecer comprovante de moradia no bairro, algo que teria requerido que eles procurassem as agências de segurança. Nem todo mundo deseja correr esse risco se deixou uma área controlada pelos rebeldes e está vivendo em acomodações temporárias em zonas sob o controle do governo.

Em lugares como a vizinha Douma e outras porções da região de Ghouta, no leste da cidade - governadas pelo que as autoridades definem como "terroristas" e a ONU classifica como "Grupos Armados de Oposição" (GAO) -, as escolas estão funcionando e os funcionários continuam a ser pagos pelo governo central, pelo menos no papel. Mas esse é o limite do envolvimento das autoridades. "Não podemos ir lá e não temos autorização para ir lá", disse Wafik al-Hadid, o diretor de planejamento e cooperação internacional no Ministério da Educação.

Cresce a preocupação quanto à imposição de currículos conservadores pelos insurgentes islâmicos. E em Douma, de acordo com a Médicos Sem Fronteiras, 104 das 377 pessoas mortas em ataques do governo no mês passado tinham menos de 15 anos. A Unicef tem o compromisso de apoiar a educação em toda parte - o que inclui esses locais de "difícil acesso", onde vivem um terço das crianças em idade escolar -, mas enfrenta dificuldade para arrecadar os fundos necessários.

Até 2011, o sistema estatal de educação da Síria era elogiado por seus padrões e pela porcentagem de crianças matriculadas, em contraste com os demais países da região. Agora, dois milhões de crianças estão sem aulas no país, e outras 700 mil vivem o mesmo problema no exterior. Uma em cada quatro escolas foi danificada e não pode ser usada. Dos professores, 50 mil fugiram ou foram mortos.

"A educação está literalmente sob fogo", disse Hanaa Singer, a diretora local da Unicef. "A Síria é um país traumatizado. As crianças estão traumatizadas. Aonde quer que eu vá, Homs, Aleppo ou Latakia, o único momento em que vejo crianças rindo é se elas estão na escola".

A boa notícia é que 3,8 milhões delas continuam estudando. No centro de Damasco fica a escola Isaaf Kheiry, uma fundação assistencial operada pelos empresários locais. Ela deixou para trás sua antiga missão de educar os órfãos e agora acolhe crianças atingidas pelo que muita gente chama simplesmente de "os acontecimentos" - eufemismo que em muitos casos inclui a morte ou detenção de um pai, em geral descrito delicadamente como "desaparecido".

A professora Amal Muhammad disse que a que a guerra também a mudou. "Eu era muito áspera, mas agora sou mais tolerante. Se as crianças chegam atrasadas ou não fizeram suas tarefas, sei que elas precisaram passar por todos os postos de controle, e que as condições em casa são difíceis".

A vontade de aprender em circunstâncias desesperadamente difíceis como essas é impressionante. Majid, 12, é um menino palestino que vivia no campo de refugiados Yarmouk, agora parcialmente ocupado pelo Estado Islâmico. Ele fala bem inglês, e está ávido por demonstrar.

Abdel-Hadi, 10, um menino sírio magrinho, não sabe como seu pai morreu, mas sua mãe vive em uma "área disputada", sob sítio do governo. "As estradas estão fechadas" é a maneira comum de explicar essa situação. Até recentemente, ele vivia com a avó e outros parentes. Agora, a equipe espera que ele desfrute de mais estabilidade e privacidade, como aluno interno nos dias de semana.

Abdel-Hadi quer estudar "tudo", e sua ambição para o futuro é incomum - e quase ilimitada. "Quero ser vice-presidente", ele declara, com orgulho. Na mente de uma criança síria leal ao governo, o posto mais alto do país provavelmente não parecerá acessível, por ainda um bom tempo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: