Folha de S. Paulo


Leia trecho do romance "A Ex-Mulher", do dramaturgo Dionisio Neto

1. Como Perla saiu de uma cobertura na Cidade Jardim para uma cabeça de porco no centro de São Paulo.

Perla Stuart.

Sua vida era um eterno e inebriante domingo de dezembro.

Poucos sabiam dos pinos do seu pé. Ela só contava para quem queria. Poucos sabiam sobre seu exame de sangue. Desse, só mesmo seu médico. Nenhum ex-marido. Nenhum. Nem mesmo Domenico de Alcântara e Albuquerque Sampaio. Nem tampouco sua filha Margarida. Margaridinha. Tão linda quanto os primeiros anos de Perla. Olhos de uma, sorrisos da outra. A voz também era a mesma, e as vezes não sabíamos mais quem imitava quem.

Perla e seus cabelos de bruxa de Bragança Paulista, Perla e seu colar verdadeiro de pérolas japonesas. Perla e seu colar falso de pérolas chinesas. Perla e seus cabelos de dondoca dos Jardins.

Manuela Eichner/Folhapress

Todas eram Perla. Confundiam-se, contradiziam-se, misturavam-se para lados opostos que as fazia empacar. Foi detectado por seu analista um princípio de depressão. Começou a tomar comprimidos. Mas não era para ser assim. Sua infância sempre fora saudável. Pegava amoras no pé, matava galinhas, sempre com a mesma animação, o mesmo riso extravagante que saia em melodiosos espasmos em lá maior.

Perla tinha dormido apenas três horas naquele domingo. Não se lembrava de quase nada da festa da casa de seu amante guitarrista, filho do maior guitarrista do país onde tinha beijado uma dezena de homens feios na boca. Ainda estava bêbada. Estava se embriagando demais nos últimos meses. Nos últimos anos para ser mais exato. Não tinha tampouco tirado os cílios postiços. Seus olhos estavam grudados.

– Ai...

Acordou naturalmente. Desta vez não foi por causa das pulgas que empesteavam seu pequeno apartamento alugado na Rua Amaral Gurgel.

O interfone já estava tocando há pelo menos meia hora. Não ouviu. Bateram na sua porta. Levantou-se ainda cambaleando num misto de medo e confusão. Quem seria àquela hora? E num domingo?

– Coisa boa não chega tão cedo.

Pelo olho mágico não reconheceu. Foi se vestir. Colocou seu "robe de chambre vintage" rosa e seu chinelo de pompom e abriu com extrema desconfiança, ainda tonta, a porta.

O taxista soltava fumaça pelas narinas:

– Seu marido não pagou a conta! O taxímetro está rodando há meia hora! Vou chamar a polícia!

– Meu marido? Que marido? Eu não tenho marido. Não tenho mais. Separei.

– Seu amante, seu namorado, sei lá, não me importa.

– Não tem ninguém aqui. Um segundo moço, não estou entendendo nada.

Fechou a porta. O taxista agora batia mais violentamente.

– Um segundo. Um segundo só. Não fique nervoso. Se for dinheiro não tem problema.

Os pés de Rogério Rogério estavam na sua frente. Sacudiu o moço. Ele também estava ainda bêbado.

– Você esqueceu de pagar o táxi?

– Pega um dinheiro na minha carteira. Tem uma nota de cem. Traz o troco.

Voltou a dormir.

Perla abriu a carteira de seu amante e tirou duas notas de cem. Guardou uma em seu bolso.

– Aqui está senhor. Quanto foi?

– Noventa.

– Noventa? Que roubo? Noventa dá até o aeroporto na bandeira dois.

– O taxímetro está rodando, senhora. Ele falou que ia subir e pegar o dinheiro. Não voltou até agora.

– Que roubo! Que roubo! Eu vou descer com o senhor e ver esse taxímetro.

– À vontade.

O elevador estava quebrado. Tudo naquele prédio estava quebrado. Estava escuro e fedia. Desceram com dificuldade. A luz do sol fez um clarão que fizeram os olhos de Perla arder. Olhou o taxímetro.

– Oitenta e cinco.

– Pegue seu troco, dona. E tenha um bom dia.

– Tenha um péssimo dia!

O som dos pneus cantando acordaram o mendigo que dormia todos os dias na frente do prédio. Ele resmungou e voltou a dormir. Perla pegou os três jornais do vizinho morto e voltou para sua escuridão dominical com seus quinze de troco. E seus cem de lucro.

MANUELA EICHNER, 30, é artista plástica.

DIONISIO NETO, 43, escritor, ator e diretor, dirige a Companhia Satélite e editou "5 Peças" (Giostri).


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