Folha de S. Paulo


A interpretação da vida onírica na cena literária

RESUMO Este texto procura explicar a visão poética de escritores fundamentais do século 19 e 20 a partir de uma concepção não freudiana do sonho. É o caso de Jorge Luis Borges e Fernando Pessoa, cujas poéticas da despersonalização e do questionamento da instância autoral são consideradas muito próximas.
– Leia traduções de textos citados neste ensaio.

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Nas obras dedicadas à explicação do significado dos sonhos, Freud costuma fazer uma diferenciação entre a interpretação científica e as interpretações pré-científicas da vida onírica.

Uma dessas formas pré-científicas de exegese dos sonhos, surgida no início do século 17 e não comentada por ele, apresenta interessantes semelhanças com a teoria psicanalítica e "sobreviverá" ao advento da psicologia profunda como peça fundamental na edificação da poética de escritores importantes do século 20.

A primeira menção mais conhecida a essa explicação do sonho se encontra no número 487 do diário inglês "The Spectator" (18.set.1712). O que leva Joseph Addison, fundador da publicação e autor do ensaio, a se ocupar do sonho não é propriamente a preocupação com o conhecimento da vida onírica, mas mostrar, pela análise dele, que a alma se separa do corpo, que ela é independente dos sentidos e superior à matéria –argumentos fortes para uma defesa da imortalidade da alma.

Mais importante ainda é a capacidade que a alma teria, nos sonhos, de se revigorar, pela variedade de ideias que produz, e de fazer companhia a si mesma. O sonho seria resposta a uma indagação filosófica e medicinal importante no século 17 e 18, que ocupou escritores como Pascal e Richard Burton –a melancolia e o tédio a que os homens não podem fugir, nem isoladamente nem em sociedade.

Se a vida fosse dividida em duas metades iguais, pergunta-se Addison, um mendigo que sonhasse ser rei não seria mais feliz do que um rei que sonhasse ser mendigo? O que poderia parecer escapismo para a psicologia profunda é, na verdade, uma antecipação de algo que o século 20 reencontrará, por exemplo, no exame que Borges faz da relação entre Chuang Tzu e a borboleta na "Nova Refutação do Tempo": "Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta e durante aquele sonho não era Chuang Tzu, era uma borboleta". O mendigo que sonha ser rei é na verdade um rei.

O sonho despersonaliza, faz o sujeito se transformar em outro ou em outra coisa; ele vira rei ou borboleta. Esse caráter do sonho estaria relacionado a outro aspecto fundamental, assinalado pelo filósofo e médico Thomas Browne, a principal fonte de Addison para a composição de seu ensaio e talvez o pai dessa teoria.

Conhecido pelo temperamento melancólico (ele relata ter nascido sobre o signo de Saturno), Browne escreve, em "A Religião de um Médico" (1643), que não consegue ser nada engraçado em sociedade, mas é capaz de compor uma comédia inteira em sonho.

O tópico será recorrente na literatura e na crítica da Grã-Bretanha: escritores de temperamento melancólico, que não são naturalmente alegres, podem no entanto se transformar em humoristas notáveis quando escrevem.

Foto Karime Xavier / Folhapress

Addison soube tirar partido das observações de Browne: o sonhador não apenas escreve uma comédia com enredo e personagens como também se torna o seu espectador, assistindo ao desenrolar da ação e a toda a pantomina da peça que ele mesmo sem saber compõe, rindo de seus efeitos quando acorda.

No sonho, o homem sério pode se converter num brincalhão e o obtuso é capaz de tiradas espirituosas que jamais lhe ocorreriam acordado porque a mente trabalha sem os impedimentos diurnos (algo como a censura nos termos freudianos), o que se pode comprovar naquela que seria, segundo Addison, a mais penosa das operações, a criação.

O sonho transforma o sonhador num escritor. Ali ele aparece como autor de cartas, artigos e livros, cuja autoria, no entanto, por um engano próprio à ficção onírica, ele acaba alienando de si e transferindo a um outro. O ensaio de Addison é incontornável para compreender pontos fundamentais da discussão sobre criação e autoria.

POÉTICA

Sem mencionar explicitamente o "Spectator" (embora faça uma breve remissão indireta a ele), o escritor alemão Jean Paul reelabora em fins do século 18 e início do 19 as considerações de Browne e de Addison.

Em "Sobre o Sonhar", de 1796, ele afirma que o sonho é "arte poética involuntária". O sonhador seria como um Shakespeare, que põe as falas e deixas na boca de suas personagens ou, mais radicalmente ainda, as próprias personagens serviriam de ponto teatral ao sonhador, soprando-lhe suas próprias falas. Os achados espirituosos do estado de vigília supõem esforço da mente, esforço que desaparece ou é transferido para as personagens na elaboração onírica e, com isso, o autor passa a assistir à encenação das personagens que não sabe que criou.

Como bem mostrou Albert Béguin em "A Alma Romântica e o Sonho", esse texto de Jean Paul anuncia a teoria romântica da inspiração, segundo a qual a beleza ou a imagem reveladora não é obra de uma elaboração consciente.

Embora antecipe as concepções contemporâneas a respeito da produção inconsciente da obra artística ou literária e o consequente desaparecimento da ideia de autor, Béguin tem certamente razão ao mostrar em seu livro, cuja primeira edição é de 1936, que as explicações românticas do sonho diferem da teoria psicanalítica pela radicalidade com que teriam afirmado o anonimato da criação.

Mais recentemente, num posicionamento muito próximo desse, Jacques Rancière nota que Freud privilegia uma forma de ver o inconsciente estético pela qual a arte e a literatura são tomadas como testemunhos, sintomas ou vestígios de uma história profunda real e efetiva, fazendo-a valer contra a outra forma dele, "a voz anônima da vida inconsciente e insensata".

Só bem mais tarde, com "Além do Princípio do Prazer", Freud teria feito correções ao "otimismo" de sua primeira teoria, retomando o inconsciente de uma maneira análoga à que teria sido concebida no romantismo.

Essas observações dão muito o que pensar sobre o quão contraditoriamente rico é o pensamento romântico. Como observam diversos estudiosos, foi também nesse período que surgiu a ideia de gênio e de autoria. De modo certamente inconclusivo, pode-se dizer que, no romantismo, a concepção de criação oscila entre anonimato e autoria, com toda a dificuldade de atribuição da obra, mas ao mesmo tempo com todo o ganho que esse jogo entre o nome e a sua ausência implica.

Alguns anos mais tarde, na "Escola Preparatória de Estética" (cuja primeira edição é de 1804), Jean Paul explica que a poética do sonho é o que estrutura a composição das personagens de ficção. Estas deveriam ser ao mesmo tempo criaturas e criadores, surgindo, como no sonho, em toda a sua vivacidade e acabamento, a despeito da consciência voluntária do seu suposto autor.

A fórmula "Na vigília fazemos o que queremos; no sonho, queremos o que fazemos" exprime bem a dupla condição das personagens oníricas: elas não podem surgir por força da vontade, mas forçam a vontade do sonhador a aceitá-las, a se submeter a seu domínio.

Ao contrário do que se poderia pensar ao ler superficialmente essas linhas, o sonho não funciona como chancela do espontaneísmo criador, mas como um genial padrão de crítica: se as personagens não falam e gesticulam como num sonho, é sinal de que não estão bem caracterizadas. Os oponentes que o sonhador encontra em seus sonhos levantam-lhe objeções mais consistentes do que os que encontra na vida comum. A elaboração inconsciente implica, portanto, um juízo crítico.

A ideia é compartilhada e bem explicada por um escritor próximo de Jean Paul: nas páginas de sua revista "Adrastea", (número 2, 1801), Herder afirma que a criação dos contos de fada deveria seguir a duplicação do eu que ocorre no sonho, a duplicação no eu que sonha e no eu que assiste ao espetáculo, sendo um o narrador, e outro, o ouvinte. Este último observa e julga a propriedade das figuras que lhe são apresentadas pelo narrador.

O sonho inventa, assim, não só o autor e suas personagens mas também a figura do crítico. Crítico que não aparece, portanto, na forma do superego, como ocorre, segundo Lacan, com o juiz moral em Kant. Suas apreciações se dão na forma de um juízo de gosto que avalia a verossimilhança da infinidade de aparições noturnas, num elenco que inclui, segundo Jean Paul, desde as figuras mais demoníacas até as mais angelicais.

POETA INTERIOR

Essa teoria da personagem de ficção alicerçada no sonho foi de grande proveito para o admirador de Jean Paul e senhor absoluto na criação e multiplicação de figuras com densidade onírica que é E. T. A. Hoffmann.

Mais popularmente conhecido pelo conto "O Homem da Areia", sobre o qual Freud escreveu seu famoso ensaio sobre o sinistro, Hoffmann deixou uma inigualável galeria de seres fantásticos. Humanos, animais, humano-animais, humano-vegetais, fantasmas, autômatos etc. –como seu alter ego, o mestre de capela Johannes Kreisler, o Pequeno Zacarias, o Barão de B., a Princesa Brambila, o Gato Murr e tantos outros.

Hoffmann foi fascinado pela afirmação de que o sonho é um "estranho poeta oculto em nós", feita pelo filósofo da natureza Gotthilf-Heinrich von Schubert (1780-1860), na sua "Simbólica dos Sonhos", pois ela implicava uma assustadora, mas fecunda assimetria: se, por um lado, muito do que entristece o sonhador parece divertir extraordinariamente o poeta interior, por outro, ele parece fazer caretas bem sérias para muitas das alegrias que ocorrem em sonho ao sonhador.

Entre outras coisas, isso leva Hoffmann a tecer uma espécie de teoria dos gêneros poéticos: dependendo dessa relação inversa entre o poeta interno e seu interlocutor, o conto fantástico pode ser assombroso ou cômico, ou, o que seria mais comum, uma mescla dos dois. A relação que o sonho estabelece com os homens contém muito de pesadelo macabro, mas o que a psicanálise entende por superego também pode se trasvestir com as roupas coloridas da ironia e do riso. De fato, como em Jean Paul, o sonho é parte essencial de uma teoria do cômico e do humor.

Num dos contos de Hoffmann, "O Magnetizador", que tem justamente por tema o sonho e a hipnose, uma de suas personagens, o pintor Franz Bickert, desenvolve esse conjunto de ideias numa poética consciente do inconsciente. Sabendo por um escritor espirituoso –Jean Paul– que os sonhos são as mais extraordinárias representações teatrais, o pintor Bickert diz a seus amigos que costuma preparar cerimoniosamente nos fins de tarde os sonhos que terá à noite.

Como ao cair da tarde seu bom humor é inquebrantável, ele deixa seu espírito ser invadido pelas coisas malucas que lhe ocorrem, as quais a fantasia representará à noite nas cores mais vivas e da maneira a mais divertida. Os sonhos podem ser provocados arbitrariamente e sugeridos a cada um que observe o seu estado de espírito diante de sugestões casuais ou de uma impressão externa nele suscitada. A mente assistiria assim a inigualáveis apresentações da "commedia dell'arte", dignas de Gozzi e representadas pela célebre trupe de Antonio Sacchi.

ENTREATO

Antes de Jean Paul e Hoffmann, a teoria poética do sonho já havia chegado à Alemanha pelas mãos do grande escritor de aforismos Georg Christoph Lichten- berg. Leitor assíduo dos ingleses, ele a conheceu com certeza diretamente da leitura do "Spectator". Num de seus aforismos, ele escreve: "Se nós sonhamos em companhia de pessoas, o quanto não as fazemos falar em seus caracteres! Por que não conseguimos o mesmo quando escrevemos?".

No ensaio "Poesia e Imaginação" (1872), Emerson também repete várias ideias encontradas em Addison, mas sua ênfase recai sobre a diferenciação entre o autor e suas personagens, que, no sonho, tomam vida própria, agem e falam por si mesmas, surpreendendo o próprio escritor. O ensaísta norte-americano também insiste na força da representação onírica, que adviria da adequação dos gestos e falas aos caracteres representados. Falstaff e Macbeth não foram inventados na escrivaninha de Shakespeare, mas é como se este os tivesse realmente conhecido.

Essa referência à adequação da atuação das personagens a modelos vivos enfraquece um pouco a argumentação de Emerson em relação à dos românticos alemães, para os quais não é a realidade que serve de paradigma ao sonho, mas o contrário. Apesar disso, é bem plausível pensar que, justamente por lembrar o traço fundamental da adequação das personagens ficcionais no sonho, ele se vale de alguma fonte do romantismo alemão que conhecia tão bem, do que pode ser indício uma referência ao historiador Barthold Georg Niebuhr.

PESADELO

Em sua conferência sobre o pesadelo, de "Sete Noites", Jorge Luis Borges volta às considerações de Addison, afirmando que nos sonhos estaria "a mais antiga das atividades estéticas".

A afirmação explica, sem dúvida, alguma coisa da concepção do fantástico e da ficção no escritor argentino. Ainda que Borges quase nunca mencione Hoffmann, a poética voluntária do sonho não está nada distante dele, assim como a ideia de que o sonho é parâmetro de instância crítica.

Ao lembrar o capítulo sexto da primeira parte do "Dom Quixote", em que o barbeiro amigo do fidalgo comenta criticamente a "Galateia" de Cervantes, no seu ensaio sobre as "Magias Parciais do Quixote" Borges afirma que "o barbeiro, sonho de Cervantes ou forma de um sonho de Cervantes, julga Cervantes...". Os personagens oníricos são juízes do acerto estético das obras de seus supostos criadores. Essa inversão de papéis acaba por incluir também o leitor, e estaria aí a chave para compreender o assombro ou inquietação que se tem diante da obra literária.

"Por que nos inquieta que o mapa esteja incluído no mapa e as 1001 noites no livro das "Mil e Uma Noites"? Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote e Hamlet espectador de Hamlet? Creio ter dado com a causa: tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios", escreve Borges.

Assim como as personagens e seus autores, os leitores correm constantemente o risco da despersonalização, de serem tragados pela ficção. Considerações dessa ordem já aparecem desde cedo na obra ensaística de Borges, como quando cita um fragmento de Novalis em "Discussão": "'O maior feiticeiro'" (escreve memoravelmente Novalis) 'seria o que se enfeitiçasse até o ponto de ver suas próprias fantasmagorias como aparições autônomas'. Não seria esse o nosso caso?".

Borges responde afirmativamente e dá um direcionamento original à questão de Novalis. São as figuras fantásticas que fazem com que o criador acredite nas realidades que elas criam, incluindo a realidade do mundo: "Nós (a indivisa divindade que opera em nós) sonhamos o mundo. Nós o sonhamos resistente, misterioso, visível, ubíquo no espaço e firme no tempo; mas aceitamos em sua arquitetura tênues e eternos interstícios de desrazão para saber que é falso".

Foto Karime Xavier / Folhapress

Algo superior –uma espécie de divindade interna– seria responsável pelos sonhos que dão consistência ao mundo, mas, nos interstícios dele, se deixam notar fissuras que fazem desconfiar de sua organização.

Essas linhas borgianas incluiriam reminiscências da leitura das "Poesias do Sonho", de Jean Paul, livro sobre o qual escreveu uma curta resenha em "El Hogar"?

Como quer que seja, a poética do escritor argentino tem uma afinidade grande com a dos românticos alemães, pois, como esta, a sua se afirma sobre a independência, a autonomia do sonho perante o real. Ou até de que a textura do real é tecida no sonho.

CAMALEÃO

Em "Everything and Nothing", Borges faz uma espécie de biografia de Shakespeare na qual o mostra como "um sonho não sonhado por ninguém". O bardo buscou em vão sua identidade, encontrando-a apenas indiretamente ao abraçar a carreira de ator e dramaturgo, pela qual absorveu, como um camaleão, as personagens que representava e criava: "Ninguém foi tantos homens quanto aquele homem".

Shakespeare teria sido a realização cabal daquela mais antiga das estéticas referida pelo escritor argentino: "A identidade fundamental do existir, sonhar e representar inspirou-lhe passagens famosas", escreve em "O Fazedor".

Talvez seja bem mais que coincidência que essa estética onírico-teatral brevemente delineada por Borges apresente grande afinidade com a poética de outro grande apreciador de Shakespeare como foi Fernando Pessoa.

Entre os livros que pertenceram à biblioteca do poeta português (hoje depositados na casa que leva seu nome em Lisboa) se encontram duas das obras aqui mencionadas: o ensaio de número 487 do seu exemplar do "Spectator" não tem nenhum grifo ou comentário à margem; já o ensaio "Poesia e Imaginação", de Emerson, se encontra bastante assinalado, mostrando seu interesse por esse texto que talvez seja uma das pistas para a compreensão do surgimento da criação heteronímica.

Um documento significativo do possível diálogo de Pessoa com as ideias de Addison e Emerson sobre o sonho se encontra na famosa "Tábua Bibliográfica" que ele redigiu para a revista "Presença", publicada em dezembro de 1928.

Esse breve currículo de um escritor que havia até então publicado bem poucos livros tem interesse por traçar a diferença entre uma obra publicada anônima ou pseudonimamente e uma obra heterônima. A obra anônima ou pseudônima é ainda obra da pessoa do autor, enquanto a heterônima é obra "do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu".

A coincidência fica mais clara quando se lê a explicação de que cada um dos seus heterônimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos) é personagem de um drama próprio, mas os três fazem parte de um drama coletivo. Enquanto cada um vive um drama próprio, os três heterônimos formam, junto com o ortônimo e com Bernardo Soares, um conjunto dramático coeso, com a devida "entreação" intelectual das personalidades assim como de suas relações pessoais. Esse conjunto dramático seria um "drama em gente" –em vez de um drama em atos.

Pessoa parece ter transportado conscientemente para a criação do seu "drama em gente" a teoria do sonho-espetáculo, concebendo sua própria despersonalização como o agente da criação dos heterônimos e semiheterônimos. Morte do autor ou multiplicação dos autores?

Embora tenha sido certamente importante no combate ao biografismo na análise literária, a tese barthesiana da morte do autor não consegue explicar todo o mecanismo; a insistência no "texto" não dá conta de toda a dramaticidade da relação entre o poeta e seus personagens, do inacabamento, da indefinição do que é de um ou de outro, da relação crítica entre eles e do fato mesmo performativo de Pessoa se colocar em cena no "drama em gente", sugerindo que se está em busca de uma equivalência ontológica (ou ontológico-onírica) do autor com seus "alter egos", do ortônimo com os heterônimos, como se lê nesta passagem: "Se essas três individualidades [Caeiro, Reis, Campos] são mais ou menos reais que o próprio Fernando Pessoa –é problema metafísico, que este, ausente do segredo dos Deuses, e ignorando portanto o que seja realidade, nunca poderá resolver".

As figuras ficcionais e as reais se confundem, exatamente como em Borges. Teria o poeta português realmente conhecido a teoria do sonho aqui discutida e a teria usado para a criação da heteronímia?

Um outro dado significativo permite que se responda afirmativamente a essa questão factual.

Leitor insaciável que era, Fernando Pessoa dá não só indireta mas também diretamente a fonte: sua biblioteca guarda um exemplar de "A Religião de um Médico" de Thomas Browne, com sua assinatura e anotado de ponta a ponta.

A passagem sobre a transformação do médico melancólico no humorista noturno, que compõe uma comédia inteira, assiste à sua ação, apreende os gestos, e ri de si mesmo no dia seguinte foi grifada por ele com traços de uma caneta bem mais forte do que a usada no resto do volume.

Mais do que esse dado factual, o que interessa, no entanto, é a maneira como Pessoa soube transformar a teoria dramatúrgica do sonho na sua teoria heteronímica.

A transposição consciente do dispositivo teatral para o mundo da criação também aqui só é possível porque ele não aceita a subordinação do onírico a um real de maior densidade psíquica ou ontológica. E é bem provável que essa visão do sonho como espetáculo esteja não só na origem do "drama em gente" mas também na concepção do "drama estático" do escritor português, drama cuja ênfase está não na ação, mas nos caracteres, nas personagens.

No final da "biografia" de Shakespeare redigida por Borges, o poeta e dramaturgo inglês –"antes ou depois de morrer"– se vê diante de Deus e lhe diz: "Eu, que tantos homens fui em vão, quero ser um e eu". E Deus lhe responde: "Eu tampouco o sou; sonhei o mundo como sonhaste tua obra, meu Shakespeare, e entre as formas do meu sonho estás tu, que como eu és muitos e ninguém".

Nota: Leia traduções de textos citados neste ensaio.

MÁRCIO SUZUKI, 54, é professor de estética na USP e autor de "A Forma e o Sentimento do Mundo" (ed. 34), entre outros. Traduziu "Pensadores Modernos", recém-lançada coletânea de ensaios de Thomas Mann (Zahar).

ANTONIO MALTA CAMPOS, 53, é artista plástico.


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