Folha de S. Paulo


Rodrigo Rodrigues e a arte do canto brasileiro

RESUMO Os dez anos da morte precoce de Rodrigo Rodrigues ensejam reflexão sobre sua arte musical, que se revela no pouco comentado "Fake Standards", gravado em 2001 e lançado postumamente em 2007. No CD, a emissão vocal, entre canto e fala, e os arranjos sutis fazem soar brasileiros os hits do cancioneiro norte-americano.

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Estive com Rodrigo Rodrigues uma única vez. Foi em fins de 2004, ou começo de 2005. Naquela época, aconteciam muitos saraus em casa e, numa dessas ocasiões, ele veio trazido por um amigo. Sentou discreto num canto, só ouvindo. Depois de um tempo, pegou o violão e apresentou três ou quatro músicas, "standards" americanos, que cantava como ninguém.

Não era só a emissão de voz e a afinação, uma mais perfeita que a outra, nem a pronúncia em inglês, igualmente rara, nem ainda o toque econômico mas suingado do violão, com harmonias estudadamente simples; não era só a emoção controlada daqueles pequenos roteiros afetivos, de uma leveza profunda, cantados ao mesmo tempo como presença e lembrança, sutilmente descolados de si. Era, sim, a combinação inaudita de todos os elementos que fazia dele um cantor original e essencialmente brasileiro, mesmo nesse repertório americano.

Conversamos um pouco, era tarde, ele se despediu prometendo voltar. Deixou a cópia de um CD ainda inédito, "Fake Standards", com aquelas canções e outras. Fora gravado poucos anos antes, em 2001, no estúdio de Mário Manga, com quem, ao lado ainda de Fábio Tagliaferri, Rodrigo formava há mais de uma década o cultuado trio Música Ligeira.

Poucos meses mais tarde, recebi a notícia de que Rodrigo estava muito doente, com uma leucemia fulminante, que o tirou de nós em 6 de abril de 2005, data em que completava 44 anos de idade.

Na época não tive coragem de ouvir de novo o CD, guardado num envelopinho de plástico. Qualquer gravação mecânica da música é sempre um triunfo contra a morte, mas, quando a vida se limita assim a seu registro, tão literal e subitamente, aquele objeto de plástico ganha outro caráter, que pede algum tempo para ser confrontado.

O CD permaneceu intocado, então, no plástico e acabou ficando preso entre dois outros, perdido numa estante. Dois anos depois, em 2007, "Fake Standards" seria lançado pela gravadora Dubas; mas a imprensa na época mal o noticiou, e as gravações, até hoje, permanecem mal conhecidas.

Há poucos dias, procurando outra coisa, deparei com aquele exemplar de "Fake Standards" que o próprio Rodrigo me deu, com a letra dele grafada a caneta, escondido entre os outros discos. Tantos anos depois, essa voz gravada ganha outro estatuto, mas sua audição, mesmo assim, não perde a força evocativa de tornar presente quem não está mais aqui.

Em outro contexto, valeria a pena comentar faixa por faixa desse disco impressionante, que reúne 14 canções de autores como Irving Berlin e Kurt Weill, uma penca de clássicos eternizados por artistas como Fred Astaire, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald e Chet Baker.

Além de cantar, Rodrigo toca violão, faz lindos solos de harmônica e ainda toca clarinete e sax, em arranjos que se distribuem de modo parcimoniosamente variado ao longo do percurso, incluindo o violão e cello de Mário Manga e aqui e ali um grupo de cordas (Luiz Amato, Adriana Holtz e o próprio Tagliaferri). Boa parte das canções é acompanhada só pelo violão de Rodrigo e do incomparável Manga. O disco tem percussão nem bateria.

BREVE

A arte é imensa, a vida é breve; vamos nos concentrar numa canção. Uma das mais curtas, interpretada só com acompanhamento de violão e sem repetições, como uma cena teatral ou um poema, que depois cada um pode ouvir ou ler de novo, mas que não faz sentido cantar mais de uma vez.

Composta em 1938 por Irving Berlin, "Change Partners" foi feita para o filme "Dance Comigo", no qual era cantada por Fred Astaire, contracenando com Ginger Rogers. Foi gravada depois no disco "Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim" (1967), com Tom tocando violão e a orquestra por trás num arranjo bossa nova clássico.

A comparação entre as duas versões esclarece muito da maneira de cantar de Rodrigo Rodrigues. O ponto central é a relação entre a voz cantada e o acompanhamento. Tanto Sinatra quanto ele entoam a letra de um modo que aproxima o canto da fala, alargada liricamente que seja; mas Rodrigo, sem perder nada do lirismo que a letra pede, leva isso a um extremo -um extremo só possível para quem passou a vida ouvindo João Gilberto.

No caso de Sinatra, a voz guarda uma regularidade métrica essencial, sob a aparência de flexibilidade, enquanto o acompanhamento desloca os acentos à maneira elegante de Jobim.

Já com Rodrigo, é quase o contrário: o violão vai pingando os acordes do modo mais regular (como faz João Gilberto em muitas situações), enquanto a voz flutua livremente, com sutilezas rítmicas que desafiam a notação. Isso dá a ele também a liberdade para fazer portamentos (passar de uma nota a outra de modo contínuo e expressivo) e espichar algumas sílabas, ressaltadas afetivamente por um vibrato delicado mas crucial.

O mesmo fenômeno, em maior ou menor grau, pode ser ouvido também em versões inesquecíveis de "Sweet Lorraine" (Burwell/ Parish, 1928), "September Song" (Kurt Weill/ Maxwell Anderson, 1938) e "Let's Face the Music and Dance" (Irving Berlin, 1936), para ficar só nessas.

O que se está descrevendo aqui, de forma bem sucinta, resume algo do que há de fundamental no canto brasileiro moderno e que tem a ver justamente com a aproximação sutil e a não menos sutil transformação entre o canto e a voz falada (assunto por excelência de nosso mestre Luiz Tatit).

Caetano Veloso fez isso por outras vias em "A Foreign Sound" (2004), projeto de imensa riqueza vocal e instrumental, com a ambição de definir padrões de excelência para a música e os músicos do Brasil, aos olhos do mundo.

Nessas gravações de Rodrigo, o que se escuta vai numa direção contrária, mas atingindo o mesmo objetivo; nada menos que a depuração das lições de João Gilberto e de Tom, transferidas para o repertório americano com a autoridade discreta de um artista brasileiro.

Escutar esse CD agora -e tanto mais este CD em particular, que recebi em mãos naquele encontro único, dez anos atrás- deixa a gente mais que comovido e faz de cada um de nós depositário e mensageiro da arte de Rodrigo Rodrigues, um dos maiores cantores que o Brasil já produziu.

ARTHUR NESTROVSKI, 55, é diretor artístico da Osesp.


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