Folha de S. Paulo


Candido cunhou interpretações literárias incontornáveis; leia trechos

O crítico literário Antonio Candido foi, pela via da literatura, um importante "intérprete do Brasil". Sua "Formação da Literatura Brasileira" (1959) – que a partir do estudo do arcadismo e do romantismo analisa a formação do "sistema literário brasileiro" – é ainda hoje obra obrigatória para qualquer um que se disponha a estudar as letras nacionais.

Mas Candido foi autor de diversos outros ensaios que se tornaram incontornáveis para o entendimento das obras sobre as quais se debruçam. Alguns desses textos estão reunidos em "O Discurso e a Cidade" (Duas Cidades, 1993).

Está neste livro, por exemplo, o seminal "Dialética da Malandragem", que faz uma genealogia dos estudos acerca de "Memórias de um Sargento de Milícias" (1854) e cunha uma leitura nova para o romance de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861). Ali está também sua interpretação de "O Cortiço", de Aluísio de Azevedo (1857-1913), "De Cortiço a Cortiço". Ambos os textos estão reunidos na seção que dá título ao livro.

Na segunda parte estão reunidas "Quatro Esperas" –a terceira delas se dedica ao romance "O Deserto dos Tártaros". Entre autores estrangeiros, Candido era um conhecido leitor de Proust, mas disse certa vez a esta jornalista que o livro ao qual sempre voltava – "todos os anos", frisou – era esse, do italiano Dino Buzzati (1906-1972), que fala de uma angustiante expectativa.

Por fim, a terceira seção do livro, "Fora do Esquadro", traz "O Poeta Itinerante", um belo ensaio todo construído a partir de um só poema de Mário de Andrade (1893-1945), "Louvação da Tarde".

Leia abaixo trechos escolhidos desses ensaios.

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DE "DIALÉTICA DA MALANDRAGEM"

"O malandro, como o pícaro, é espécie de um gênero mais amplo de aventureiro astucioso, comum a todos os folclores. Já notamos, com efeito, que Leonardo pratica a astúcia (mesmo quando ela tem por finalidade safá-lo de uma enrascada), manifestando um amor pelo jogo-em-si que o afasta do pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sempre ao proveito ou a um problema concreto, lesando frequentemente terceiros na sua solução. Essa gratuidade aproxima 'o nosso memorando' do trickster imemorial, até de suas encarnações zoomórficas –macaco, raposa, jabuti– , dele fazendo, menos um 'anti-herói' do que uma criação que talvez possua traços de heróis populares, como Pedro Malasarte. É admissível que modelos eruditos tenham influído em sua elaboração; mas o que parece predominar no livro é o dinamismo próprio dos astuciosos de história popular. Por isso, Mário de Andrade estava certo ao dizer que nas 'Memórias' não há realismo em sentido moderno; o que nelas se acha é algo mais vasto e intemporal, próprio da comicidade popularesca."

"O cunho especial do livro consiste numa certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do 'homem como ele é', mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e o da desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente o bem e o mal."

"Diversamente de quase todos os romances brasileiros do século 19, mesmo os que formam a pequena minoria dos romances cômicos, as 'Memórias de um Sargento de Milícias' criam um universo que paece liberto do peso do erro e do pecado. Um universo se culpabilidade e mesmo sem repressão [...]."

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DE "DE CORTIÇO A CORTIÇO"

"Em nenhum outro romance do Brasil tinha aparecido semelhante coexistência de todos os nossos tipos raciais, justificada na medida em que assim eram os cortiços e assim era o nosso povo, é claro que visto numa perspectiva pessimista, como a dos naturalistas em geral e a de Aluísio em particular. Deste modo o cortiço ganha significado diferente do que tinha em Zola, pois em vez de representar apenas o modo de vida do operário, passa a representar, através dele, aspectos que definem o país todo. E como solução literária foi excelente, porque graças a ele o coletivo exprime a generalidade do social."

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DE "TERCEIRA: NA FORTALEZA"

"Il Deserto dei Tartari (1940), de Dino Buzzati, conta a história de um jovem oficial, Giovanni Drogo, destacado ao sair da Escola Militar para a Fortaleza Bastiani, situada na fronteira com um reino setentrional. Para além dela se estende uma planície imensa, o Deserto dos Tártaros, de onde desde séculos não vem sinal de vida. De tal modo que a guarnição parece inútil, pela ausência de inimigos visíveis ou mesmo prováveis. Mas há a ilusão de um perigo virtual e constante, que poderia causar a guerra e dar aos oficiais e soldados a oportunidade de mostrarem o seu valor. Por isso vivem todos numa expectativa permanente, que ao mesmo tempo é esperança –, a esperança de poder um dia justificar a vida e ter ocasião de brilhar."

"Um dos núcleos do livro se define no capítulo 6, que de certo modo prefigura o destino de Drogo: inconsciência em relação ao presente, que o empurra para o passado da Fortaleza (a fim de que o presente seja igual ao que foi o passado desta); e ilusão em face do futuro. Como a única realidade acaba sendo reduzir tudo a passado, pois o futuro nunca se configura, surge o desencanto. A Fortaleza é o portão fechado atrás de cada um, que mata o presente ao reduzi-lo a um passado que não é o individual, mas o que foi imposto, e ao propor como saída um falso futuro.
Os oficiais se apegam então a esta saída única e duvidosa, sob o acicate da esperança, que se torna uma espécie de doença. Todos esperam o grande acontecimento, vítimas de uma ilusão comum alimentada pela perspectiva da vinda dos tártaros imponderáveis."

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DE "O POETA ITINERANTE"

"Meditação da mais completa modernidade, seja dito, a começar pelo fato de não ir o poeta a pé, como viajante de Wordsworth, o 'flâneur' de Baudelaire, o notâmbulo alucinado de Augusto dos Anjos ou os personagens tresmalhados de Eliot. Nem a cavalo (apesar de estar no campo), como Julian e Maddalo no poema onde Shelley figurou a si próprio e a Byron sob estes nomes. Em 'Louvação da Tarde', o poeta vai de automóvel, que designa por um diminutivo carinhoso e trata como ser vivo, pois em vez de dirigi-lo, abandona-se a ele, ao modo de montaria confiável cujas rédeas foram soltas."

"Trata-se portanto de uma meditação itinerante entrosada na era da mecanização, e tanto quanto sei é a primeira onde o deslocamento no espaço se faz por este meio. É claro que há poemas anteriores nos quais o automóvel aparece, mas não conheço outro onde esteja em contexto semelhante, isto é, o do poema-meditação. Creio que Mário de Andrade realmente inventou, ao aproveitá-lo como traço moderno inserido em texto de ressonância tradicional, gerando a modernidade através de uma atitude quase paródica. Lembro que é posterior, de 1928, o curto poema em versos livres no qual Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) narra uma excursão noturna 'ao volante do Chevrolet', durante a qual expõe as emoções do momento."


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