Folha de S. Paulo


Crítica

Falta rigor crítico a coletânea de cartas de Caio Fernando Abreu a Hilda Hilst

U Dettmar - 28.mai.1982/Folhapress
Caio Fernando Abreu. Sao Paulo (SP), 28.05.1982, foto: U Dettmar/Folha Imagem ***FOTO DE USO EXCLUSIVO FOLHAPRESS*** ORG XMIT: AGEN1012142343536224
O escritor Caio Fernando Abreu, em maio de 1982

O subtítulo de "Numa Hora Assim Escura" engana: "A paixão literária de Caio Fernando Abreu e Hilda Hilst" sugere uma reciprocidade que não se materializa no conjunto de cartas publicado e comentado pela jornalista Paula Dip —22 do autor gaúcho para a escritora paulista e duas na mão contrária.

Também fica sem sustentação uma afirmativa como esta: "A intimidade com o texto fluido de Caio ampliaria o espectro da obra de Hilda...". Se o afeto do autor de "Morangos Mofados" pela poeta e prosadora de "A Obscena Senhora D" é evidente em suas missivas, é o de Paula Dip por Caio que mais sobressai.

A autora de "Para Sempre Teu, Caio F." (2009), relato sentimental sobre sua correspondência e amizade com o escritor, volta a adotar um tom de veneração ao amigo morto em 1996, vítima da Aids.

"É claro que o fato de ter sido amiga do Caio me transforma numa pessoa especial", escreveu ela na obra de 2009. Continua a crer nisso, mas, tratando agora de material que não a envolve diretamente e que exigiria algum rigor crítico, colhe resultados menos felizes.

O encontro de um Caio mal saído da adolescência com uma Hilda em fase de afirmação contracultural é um tema instigante. Em fins dos anos 1960, o jovem cabeludo —já com um romance terminado, "Limite Branco" —foi um dos artistas atraídos pela aura esotérica da Casa do Sol, em Campinas, onde a excêntrica escritora se recolhera com suas dezenas de cães em 1963.

Depois de alguns meses de convivência próxima e turbulenta com a anfitriã, com quem compartilhava a paixão pelo ocultismo, Caio partiu para o Rio de Janeiro. Errante, fiel ao espírito hippie do tempo e à sua arte, viveria no limite da precariedade material em outras "comunidades" no Brasil e na Europa.

Nunca deixou de escrever para Hilda, como de resto para nenhum de seus amigos. Talvez só perca para Mário de Andrade, de quem diferia no estilo rasgadamente confessional, como o mais prolífico missivista da literatura brasileira. Escrevia cartas "freneticamente", segundo Italo Moriconi, organizador do pioneiro volume "Cartas" (2002).

Naquele tijolo de 475 páginas, fruto de uma seleção que buscava dar "maior nitidez e destaque às melhores cartas de Caio", Moriconi incluiu oito missivas a Hilda, garimpadas no Centro de Documentação da Unicamp.

Algumas delas, como a de dezembro de 1970 em que Caio relata um encontro com a "linda, profunda, estranha, perigosa" Clarice Lispector, são mais eloquentes do que as do lote de inéditas que Paula Dip comprou de um ex-namorado de Hilda.

Apesar disso, essas cartas (com fac-símiles na edição) são o que há de mais substancial em "Numa Hora Assim Escura". Especialmente para os apaixonados pela literatura de Caio ou os cultores do mito Caio, um autor que vai se tornando maior que a vida.

Mesmo os mais empolgados, contudo, podem achar indigestos trechos kitsch como este: "Como numa lenda da mitologia, escritores e semideuses, à sua maneira, cheios de virtudes e pecados, esses dois se reconheceram num par fatal e improvável que brindou a língua portuguesa com momentos de êxtase".

NUMA HORA ASSIM ESCURA
AUTOR Caio Fernando Abreu
ORGANIZADORA Paula Dip
EDITORA José Olympio
QUANTO R$ 59,90 (160 págs.)


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