Folha de S. Paulo


Crítica

Miguel Ángel Asturias põe ditador no centro de roda de horrores

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Manuel Estrada Cabrera, president of Guatemala from 8 February 1898 to 15 April 1920. Foto: Dominio Publico ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Manuel Estrada Cabrera, presidente da Guatemala de 1898 a 1920, que inspira presidente do livro

"Seu país doía-lhe como se seu sangue tivesse apodrecido. Doía-lhe fora e na medula, na raiz do cabelo, sob as unhas, entre os dentes." A dor moral vira dor física quando o velho general se dá conta da dimensão cósmica da injustiça e da crueldade sobre a qual está fundada sua republiqueta latino-americana sem nome.

Inimigo político do ditador anônimo que dá título ao romance "O Senhor Presidente", o digno general Eusebio Canales somatiza a tragédia latino-americana da mesma forma que a prosa do guatemalteco Miguel Ángel Asturias (1889-1974) se deixa atravessar por ela.

Borrando as fronteiras entre sonho e realidade, racionalismo europeu e mitologia pré-colombiana, gosto pela metáfora colorida e delírio surrealista desbragado, a narrativa em episódios curtos da obra-prima de Asturias, Prêmio Nobel de 1967, atinge momentos de beleza intensa.

Para melhor apreciá-los, o leitor familiarizado com o "boom" do romance latino-americano deve fazer um exercício de contextualização. "O Senhor Presidente" foi concluído em 1932, quando o autor vivia em Paris (e só publicado em 1946, por razões políticas).

Há décadas fora de catálogo no Brasil, corre o risco de ser visto como pouco original justamente no que tem de mais influente.

O fato de poder ser classificado como "romance de ditador" –subgênero que seria cultivado mais tarde por Gabriel García Márquez e Augusto Roa Bastos, entre outros– não obscurece o tratamento próprio que "O Senhor Presidente" dá ao tema.

um enigma

Calcado em Estrada Cabrera, que governou a Guatemala de 1898 a 1920, o personagem-título é um enigma. Está no centro da roda de horrores do livro, mas dele só captamos lampejos ora ridículos, ora aterrorizantes, como se seu poder se alimentasse do insondável.

Até as ruas da capital, dotadas pela exaltação da prosa de movimentos próprios como bichos ou órgãos vivos, chegam mais perto de se constituir como personagens do que ele.

Os personagens propriamente ditos são mendigos, loucos, prisioneiros políticos, policiais, militares legalistas sem caráter, prostitutas e, sobretudo, o par responsável pela história de amor que brota como flor nessa imundície: Miguel Cara de Anjo, aspone favorito do ditador, "belo e mau como Satã", e a inocente Camila Canales, filha do militar que somatiza as desgraças da pátria.

É a essa galeria de tipos unidos pelo medo que Asturias dedica alguma densidade psicológica numa narrativa que tende aos exageros da caricatura. Crispado de pesadelo, invadido pelos bordões encantatórios de cantigas populares, seu fluxo de consciência os humaniza.

O que se conhece como "realismo mágico" é um rótulo comercial e um guarda-chuva estilístico sem definição teórica pacífica, mas pode-se dizer que "O Senhor Presidente" tenta se descolar dele na recusa à saída pela magia.

Obra que vale por si, o que tem de formalmente novo é a feliz aclimatação do surrealismo europeu de André Breton, amigo de Asturias, a um continente em que os países doíam –e ainda doem– "na raiz do cabelo, sob as unhas, entre os dentes".

O SENHOR PRESIDENTE
AUTOR: MIGUEL ÁNGEL ASTURIAS
TRADUÇÃO: LUIS REYES GIL
EDITORA: MUNDARÉU
QUANTO: R$ 46 (360 PÁGS.)


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