Não parece um acaso que, tomados em conjunto, os livros publicados por Veronica Stigger formem até em sua feição gráfica um grupo dos mais díspares. É como se a tentativa de reuni-los revelasse o que têm de desconjuntado e brancaleônico, à maneira de uma coleção de bricabraques que não se deixa apanhar de uma só vez.
Essa impressão geral reitera qualquer coisa de recorrente, em escala reduzida, nos procedimentos de escrita à primeira vista dessemelhantes de cada livro: de maneira mais evidente, talvez, o flerte com o disparate, ao qual se pode atribuir um duplo sentido.
Se às vezes tal flerte confere ímpeto à fabulação extravagante e profusa, como acontece em "Gran Cabaret Demenzial" (2007), também pode se realizar na compilação de vozes alheias, como se vê nos diálogos anônimos de "Delírio de Damasco" (2012).
Christian von Ameln | ||
A escritora Veronica Stigger, de "Sul" |
Entre demência e delírio, espetáculo noturno e escuta de vozes, o disparate é ainda visão lúcida de um mundo destrambelhado e afronta ao verniz dos bons costumes cívicos e literários.
É um registro amplo que vai do grand-guignol cartunesco de "Os Anões" (2010) à burla mais comedida do premiado "Opisanie?wiata" (2013).
Seu novo livro, "Sul", assume a maneira da miscelânea. É um volume que reúne em menos de cem páginas textos de gêneros diversos: um conto, uma peça e um poema.
Esse último, intitulado "O Coração dos Homens", é sucedido por outro poema, escondido dentro de páginas coladas, que o leitor tem que abrir para ler. O rasgo revela "A Verdade sobre o Coração dos Homens", como que um avesso do poema anterior, desdizendo as memórias de infância ali compiladas.
O gesto de abrir à força as páginas e o jogo de citações internas criado pela relação entre os poemas geminados retomam dois fios condutores do livro: as imagens cruentas de lacerações e secreções e os procedimentos de permutação textual.
É algo que se vê no sangrento rodízio de gestos criado em "2035", espécie de fábula distópica que alterna afagos e chicotadas, ou no quase nonsense de "Mancha", em que Carol 1 e Carol 2 trocam perguntas e respostas desencontradas para explicar as poças de sangue espalhadas no chão, nos móveis, e, afinal, nelas mesmas.
A brutalidade da brincadeira, ou a frivolidade da violência, têm algo de uma selvageria infantil já sugerida pela capa do livro. Os opostos se atraem e se confundem.
O furto, apropriação indébita sem dívida nem culpa, alimenta a fábula, composta com verve e inteligência por meio da recolha e montagem (à maneira de uma colagem) de um repertório pessoal de procedência variada.