Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Imagens sangrentas conduzem bom novo livro de Veronica Stigger

Não parece um acaso que, tomados em conjunto, os livros publicados por Veronica Stigger formem até em sua feição gráfica um grupo dos mais díspares. É como se a tentativa de reuni-los revelasse o que têm de desconjuntado e brancaleônico, à maneira de uma coleção de bricabraques que não se deixa apanhar de uma só vez.

Essa impressão geral reitera qualquer coisa de recorrente, em escala reduzida, nos procedimentos de escrita à primeira vista dessemelhantes de cada livro: de maneira mais evidente, talvez, o flerte com o disparate, ao qual se pode atribuir um duplo sentido.

Se às vezes tal flerte confere ímpeto à fabulação extravagante e profusa, como acontece em "Gran Cabaret Demenzial" (2007), também pode se realizar na compilação de vozes alheias, como se vê nos diálogos anônimos de "Delírio de Damasco" (2012).

Christian von Ameln
São Paulo - SP - 10.12.2010 - Foto: Christian von Ameln - A escritora Veronica Stigger em sua casa.
A escritora Veronica Stigger, de "Sul"

Entre demência e delírio, espetáculo noturno e escuta de vozes, o disparate é ainda visão lúcida de um mundo destrambelhado e afronta ao verniz dos bons costumes cívicos e literários.

É um registro amplo que vai do grand-guignol cartunesco de "Os Anões" (2010) à burla mais comedida do premiado "Opisanie?wiata" (2013).

Seu novo livro, "Sul", assume a maneira da miscelânea. É um volume que reúne em menos de cem páginas textos de gêneros diversos: um conto, uma peça e um poema.

Esse último, intitulado "O Coração dos Homens", é sucedido por outro poema, escondido dentro de páginas coladas, que o leitor tem que abrir para ler. O rasgo revela "A Verdade sobre o Coração dos Homens", como que um avesso do poema anterior, desdizendo as memórias de infância ali compiladas.

O gesto de abrir à força as páginas e o jogo de citações internas criado pela relação entre os poemas geminados retomam dois fios condutores do livro: as imagens cruentas de lacerações e secreções e os procedimentos de permutação textual.

É algo que se vê no sangrento rodízio de gestos criado em "2035", espécie de fábula distópica que alterna afagos e chicotadas, ou no quase nonsense de "Mancha", em que Carol 1 e Carol 2 trocam perguntas e respostas desencontradas para explicar as poças de sangue espalhadas no chão, nos móveis, e, afinal, nelas mesmas.

A brutalidade da brincadeira, ou a frivolidade da violência, têm algo de uma selvageria infantil já sugerida pela capa do livro. Os opostos se atraem e se confundem.

O furto, apropriação indébita sem dívida nem culpa, alimenta a fábula, composta com verve e inteligência por meio da recolha e montagem (à maneira de uma colagem) de um repertório pessoal de procedência variada.

SUL
AUTORA Veronica Stigger
EDITORA 34
QUANTO R$ 35 (96 PÁGS.)


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