Folha de S. Paulo


Brasileira revela cartas inéditas do poeta português Herberto Helder

É uma voz que vem de longe, mas familiar para quem a conhece: "Penso que uma pessoa escreve para passar desapercebida, para rodear-se de silêncio, para saber objetivamente que está diferente dos outros, para ocultar-se."

Essas palavras foram escritas pelo recluso poeta português Herberto Helder (1930-2015) a uma pesquisadora brasileira, no dia 27 de julho de 1975. O documento faz parte de um conjunto de 52 cartas, que estiveram guardadas até agora.

Divulgação
O poeta português Herberto Helder, autor de
O poeta português Herberto Helder

A brasileira é a poeta e pesquisadora Maria Lúcia Dal Farra, autora de "A Alquimia da Linguagem", livro sobre a obra de Herberto. Os dois se corresponderam de maio de 1973 até abril de 1988 –uma troca principalmente intelectual (ou seja, sem indiscrições privadas) e, por isso mesmo, valiosa.

Os documentos vieram à tona há cerca de duas semanas, em um congresso na Universidade da Madeira, em Portugal, quando Dal Farra anunciou a doação dos papéis para a instituição.

"Não tinha mostrado essas cartas nem para o meu marido. Mas estou com 72 anos, achei que elas precisavam ir para um bom lugar. E não estou sendo indiscreta, não são cartas pessoais, bisbilhoteiras", diz Dal Farra.

SEGUNDA VEZ

O poeta sempre foi defensor feroz de sua privacidade –que também era preservada pelos amigos. Por isso, é incomum sua correspondência vir à tona.

Esta é apenas a segunda vez em que isso ocorre desde sua morte, em março de 2015. A primeira foi na revista de poesia "Relâmpago", dirigida por seu amigo Gastão Cruz, que tornou algumas missivas públicas em abril.

Poeta altamente experimental, influenciado pelo surrealismo, Herberto parece se ressentir, em uma carta de 1978, de não receber atenção dos críticos: "Dizem que a minha poesia é 'impenetrável' e por isso –conforme me constou– não escrevem sobre ela. [...] Espero que o tempo me dará [sic] as razões e a razão."

No mesmo ano, tenta definir o que a escrita significava para ele: um meio "instável e precário" de introduzir alguma ordem a si e à sua volta. Um jeito de libertar-se de "uma sufocação interior que contaminava cada instante da vida".

O tom das cartas, destaca Dal Farra, passa principalmente pelo ofício literário –mesmo quando é para renegar textos. Surge também um desejo do poeta de encontrar a harmonia –e por vezes a África aparece como um lugar onde isso é possível.

"Eu queria estar em África, no Sul de Angola, ou no deserto, numa região que lá é conhecida como Terras-do-Fim-do-Mundo. Penso que acabarei por aí ir parar, fazendo uma vida o mais primitiva e essencial possível", escreve ele em 1973.

Há outras com desejo de mudar-se de Portugal, e o Brasil surge como destino desejado. Por fim, o poeta termina por se estabelecer em Cascais. "Continuarei a queimar-me em meu próprio lume", diz o autor.

Há uma parte confusa, porém, na correspondência: o autor diz ter temido voltar a Lisboa por "motivos políticos" em 1975 –ou seja, depois do movimento que tirou o salazarismo do poder, quando tudo deveria estar bem.

"Não sou de direita. Mas nessa altura, e agora também (até quando?), quem não estava (está) com o partido comunista (estalinista) era (é) fascista", diz Herberto, acrescentando estar decepcionado com a Revolução dos Cravos.

"Nesse ano há uma espécie de recuo imposto pela direita ao movimento do 25 de Abril [a Revolução dos Cravos]. Há um mal-estar dos intelectuais vendo as lutas do movimento afetadas", diz Arnaldo Saraiva, professor da Universidade do Porto e amigo de Herberto.

Uma das partes mais comoventes é quando o poeta reflete sobre o desejo de ocultar-se através da escrita. E vê um paradoxo:

"Penso que, se é forçoso estar oculto, aspira-se a que nos desocultem, a que nos tirem a razão, a que nos deixem desarmados, nus, humanos, frágeis. Porque só assim, descobertos, poderemos ser amados."

OBRA COMPLETA NO BRASIL

Embora fosse considerado um dos maiores poetas portugueses desde Fernando Pessoa, Herberto Helder seguiu quase desconhecido no Brasil –e com um culto restrito a escritores.

Desde o começo do ano, porém, sua obra completa começou a ser editada pela primeira vez no país, pela Tinta da China.

O primeiro livro foi "Os Passos em Volta" (R$ 69, 176 págs.). Agora, acabam de chegar às livrarias os "Poemas Completos" (R$ 99, 736 págs.). Para o futuro estão programados o "O Bebedor Nocturno", "Poemas Canhotos" e "Photomaton & Vox".

Herberto havia sido editado no país pela Iluminuras e pela Girafa –mas fazia alterações obsessivas em sua obra, daí que se diga que ele escrevia "o poema contínuo".

LEIA TRECHOS DAS CARTAS:

Penso que uma pessoa escreve para passar desapercebida, para rodear-se de silêncio, para saber objectivamente que está [o grifo é dele] diferente dos outros, para ocultar-se. Alguma coisa a este respeito disse eu na parte final do 2º. vol. de "P.T", nas "Antropofagias". Mas tudo isso é complexo: penso que, se é forçoso estar oculto, aspira-se a que nos desocultem, a que nos tirem a razão, a que nos deixem desarmados, nus, humanos, frágeis. Porque só assim, descobertos, poderemos ser amados. A decifração é o único acto de amor. Por isso, apenas se é atingido por certo tipo de tentativa de decifração. Por isso a gente pode rir de quase todas as pretensões exegéticas. Olhamos para nós mesmos, e vemo-nos com a mesma roupa. Até que chega - quando chega - o temido e amado decifrador, aquele que realmente traz chaves, o que traz armas - o guerreiro. Isto é a história, noutro plano - de Jacob e o Anjo? É a história geral e contínua - mas particular e rara - da bela adormecida, de todas as demandas e esperas, de todas as expectações e atenções, de todas as casas à espera de serem habitadas. Assim na vida; assim na outra vida, cumulada, potencializada, sobrecarregada, mais intensa e significativa, do poema.
27 de julho de 1975

Porque eu sou a minha poesia e, de certo modo, sou o que os meus poemas fizeram de mim. Isto não é atitude literária. Muito mais real do que se possa crer.
17 de novembro de 1977

_Afinal, a grande mudança e transformação foi deslocada para o infinito. Enfim, as longas e belas histórias do nada. Continuarei a queimar-me no meu próprio e privado lume. A serenidade é um pensamento dos atormentados. E é pelo desejo de salvações que se vê como funciona quem está perdido. Bilhete lúgubre, este. Não dês importância. Já sei que a minha força está em saber manejar a minha fraqueza. Sou hoje uma espécie de campeão nesta estranha ginástica. (...) Estou em ressurreição lenta. _
20 de novembro de 1978

Estou num estado lamentável: uma grande depressão. Sinto voltarem todos, ou grande parte deles, os sintomas dos meus piores períodos de depressão. Quatro anos de psicanálise parecem não ter feito muito. A ideia de que vou enlouquecer, obsessões de toda a ordem, insónias, alterações de percepção, enfim: o catálogo inteiro de psicopatologia, como eles dizem. Gostaria de morrer.
4 de março de 1976

Com um psicanalista, passei eu tardes inteiras às voltas com a numerologia do "Apocalipse", cujas revelações (chegamos a essa conclusão, aliás apoiados em certas correntes exegéticas), para terem um verdadeiro sentido de conjunto, devem ser procuradas num esquema numerológico. Incrível, mas o psicanalista suicidou-se passado um mês! Chamava-se Fernando Medina. Ele procurava conciliar uma quantidade de coisas inconciliáveis; suponho que morreu disso, de inconciliação. Como se morre de insolação. Há sóis demasiado fortes para as nossas cabeças.
31 de setembro de 1978


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