Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Fiel a relato, livro 'O Voyeur' é mais confissão do que reportagem

Lá pela metade de "O Voyeur", Gay Talese diz não poder confiar no personagem central de seu livro, um homem que por três décadas teria vigiado hóspedes de seu motel nos arredores de Denver por buracos nos tetos.

Suas histórias vão do tédio de assistir às pessoas assistindo à TV aos horrores de um assassinato, passando pela libido de um ménage-à-trois, sessões de masturbação, atos incestuosos, sexo com ursinhos de pelúcia, entre outras práticas restritas à privacidade de um quarto de motel.

Num manuscrito entregue ao autor, o bisbilhoteiro Gerald Foos narra os episódios, encerrando as anotações com uma espécie de moral da história. Conclui, por exemplo, que "lésbicas são melhores amantes umas para as outras" e que "indivíduos de áreas rurais, tipos não instruídos", preferem sexo no escuro.

Daigo Oliva - 30.mai.12/Folhapress
Retrato de Gay Talese, apontado como guru do jornalismo literário, em visita ao Brasil
Retrato de Gay Talese, apontado como guru do jornalismo literário, em visita ao Brasil

Talese não escreveu o livro sem antes ter visto a abertura feita por Foos no teto de um dos quartos. Ele conta que deitado sobre a grade de ventilação viu um casal fazendo sexo oral, quase arriscando a operação quando sua gravata escorregou pela fresta e balançou sobre a mulher entregue ao prazer ali embaixo.

Mas, logo após a publicação do livro nos Estados Unidos no ano passado, reportagens apontaram buracos na apuração de Talese. Não só Foos parece ter romanceado as visões que diz ter testemunhado como as datas não batem. Em parte do tempo relatado nos manuscritos, ele não era dono do motel. A polícia também não tem registro do estrangulamento que narra.

Numa espécie de mea culpa, Talese já jogava uma sombra de dúvida sobre tudo, antes de o livro ser lançado como uma mácula sobre a reputação do autor, considerado guru do jornalismo literário.

Talvez porque não se importasse tanto com os fatos. Mais do que como história, seu livro pode ser entendido como um caso em que entrevistador e entrevistado se confundem.

Talese chega a começar frases que terminam em declarações de Foos. Estava apaixonado pelos relatos, embora tente mascarar isso com certa frieza estilística.

No fundo, "O Voyeur" é também um ato de voyeurismo sobre a escrita. Enquanto dois terços do livro são a pura transcrição do manuscrito de Foos, como se Talese avalizasse a narrativa reproduzindo ponto por ponto, as observações do autor se resumem às dúvidas diante dos relatos.

É menos uma reportagem e mais um ato de confissão, uma espécie de devoção cega a uma história quando ela é boa demais. Boa demais para ser verdade, diriam alguns. A elegância habitual de Talese aqui se esvai, deixando o palavrório de borracharia de Foos tomar o centro do palco.

O Voyeur
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Em muitos momentos, Talese parece ter revelado ao mundo não só a história de um viciado na sacanagem vista do sótão mas também um grande escritor, com belos insights sobre a vida a partir da observação do sexo barato em quartos de motel.

Muito além da controvérsia, e caso passasse para a rubrica de ficção, "O Voyeur" se sustenta como um livro delicioso. Enquanto jornalismo, o resultado resvala para a masturbação literária que nunca chega ao clímax.

O VOYEUR
Autor: Gay Talese
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,90 (272 págs.)


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