Chantagens, intimidações, ameaças, invasões de privacidade, subornos, mentiras, truculências. Em escala industrial, ilegalidades foram perpetradas pelos jornais de Rupert Murdoch no Reino Unido durante anos.
A descoberta dos esquemas, em 2011, provocou a fuga de anunciantes e abalou o apoio político do magnata. A saída foi fechar o epicentro do escândalo, o centenário tabloide "News of the World" (de 1843), então campeão de vendas no país, com 3,5 milhões de exemplares aos domingos. Por pressão da opinião pública, planos de expansão do poderio de Murdoch na esfera televisiva foram adiados.
As entranhas desse processo são dissecadas com vigor por Nick Davies em "Vale Tudo da Notícia, o Escândalo de Grampos, Suborno e Tráfico de Influência que Abalou um dos Maiores Conglomerados de Mídia do Mundo", de 2014, lançado agora no Brasil. O jornalista, escrevendo para o "Guardian", foi fundamental para a apuração e revelação das estratégias criminosas implantadas nos jornais do megaempresário australiano.
Lucas Jackson/Reuters | ||
O magnata australiano Rupert Murdoch chega ao supremo tribunal do Estado de New York em 2013 |
O livro traz um minucioso bastidor do trabalho de Davies. Mostra como ele foi coletando informações, enfrentando as blindagens que as empresas de Murdoch, a polícia britânica e os políticos construíram em torno do caso. Aborda também os seus erros e expõe os apoios que obteve junto a jornalistas de outros veículos, celebridades, advogados e fontes mantidas no anonimato.
Narrada com intensidade, a trama parece saída dos livros de ficção de Stieg Larsson. No lugar da polícia secreta sueca ou do dono de jornal comprometido com negócios imorais ou ilegais estão a espionagem praticada sem freios com o acobertamento de policiais e uma máquina criminosa de ataque à privacidade.
Com o sentimento de impunidade, tudo valia para conseguir montar uma história (nem sempre verdadeira) que alavancasse as vendas e exercesse o papel de controle sobre o poder -dos políticos, de artistas, qualquer um. "Reportagens" eram montadas com violações de caixas de mensagens e serviam para atacar pessoas revelando sua intimidade de forma sórdida.
As artimanhas ferozes dos empregados de Murdoch lembram as crueldades da gangue dos "drugues" em "Laranja Mecânica", de Anthony Burgess, diz o autor. De fato, em muitas partes, os estratagemas dão ânsia.
Mas o livro vai além. Contundente, encaixa o império Murdoch no avanço das ideias neoliberais que invadiram o Reino Unido a partir do governo de Margaret Thatcher (1979-1990). Aliás, foi com uma providencial ajuda da chamada "dama de ferro" que o australiano conseguiu implantar os primórdios de seu conglomerado na Europa.
O governo britânico liberou seus polêmicos avanços e bloqueou seus concorrentes.Ideologicamente, Murdoch e Thatcher têm tudo a ver. Os jornais do bilionário idolatram a redução do Estado, as privatizações, a desregulamentação dos mercados, o esmagamento das organizações sindicais e das leis de proteção social.
As publicações trazem um show de preconceito e racismo (especialmente contra homossexuais e imigrantes) -instrumentos históricos da direita-, tentando reduzir e canalizar o interesse público a intrigas sexuais. Se envolver famosos ou a realeza, melhor ainda.
Davies aponta Murdoch como a vanguarda ideológica do retrocesso à direita, que empurra governos e instituições para atuarem de acordo com seus interesses. Particularmente reveladores são os trechos do livro que tratam de festas reunindo governantes, empresários e editores -uma mescla entre o público e o privado, no qual reinam o exibicionismo, a ostentação, o exercício de poder sem filtro.
Leitura obrigatória para jornalistas e todos os que se interessam pelo jogo de poder, "Vale Tudo da Notícia" apresenta uma visão cética sobre as perspectivas de democratização da mídia. Nota que, apesar de todo o baque provocado pelo escândalo das escutas, a força do grande conglomerado só cresce.