Folha de S. Paulo


Há 90 anos no Brasil, cruzadinhas preservam detalhes de sua criação

Peremptoriamente. Sucumbir. Quixadá. Estripulia. Gângster. Com uma caneta esferográfica vermelha, Luciano Mussolin, 58 anos, lista as palavras que lhe vêm à cabeça numa manhã nublada de quarta-feira.

Os verbetes serão usados na criação dos enigmas que ele, autor de palavras cruzadas há 40 anos, elaborará no dia. Sentado em sua escrivaninha em um sobrado em Poços de Caldas, Mussolin toca com o irmão, Adriano, a revista "A Recreativa", a mais longeva do gênero em circulação no país.

O cheiro de bolo de banana, assando no forno, sobe pelas escadas da casa, enquanto o cruzadista conta a história da empresa fundada pelo pai, Owen Mussolin (1922-2002), há 65 anos -30 anos depois de as primeiras cruzadas terem sido publicadas no Brasil, segundo o dicionarista Sérgio Xavier, que pesquisa a história do passatempo.

Lalo de Almeida/Folhapress
Os irmãos Adriano e Luciano Mussolin, sócios da A Recreativa, editora de Poços de Caldas especializada em palavras cruzadas.
Os irmãos Adriano e Luciano Mussolin, sócios de editora especializada em palavras cruzadas

No mundo, quem inaugurou o gênero foi Arthur Wynne, editor do jornal "New York World". Ele publicou as primeiras cruzadas da história em 21 de dezembro de 1913.

"A NOITE"

Na edição de 22 de abril de 1925, a capa do jornal carioca "A Noite" apresentava o desafio com o título: "O moderno jogo de paciência que empolga os europeus e os yankees".

"Está na moda nos Estados Unidos e em diversos paizes [sic] da Europa um curiosíssimo jogo que os inglezes [sic] denominaram de 'crossword puzzles'; os franceses 'mots croisés' e que nós poderíamos chamar simplesmente palavras cruzadas", dizia o jornal, que definiu o passatempo como "admirável exercício para a memória e para o espírito".

A edição explicava o jogo, com exemplos de charadas resolvidas, e propunha aos leitores que resolvessem uma cruzadinha, em branco. "Mas os responsáveis se esqueceram de incluir as perguntas", conta Xavier.
Enquanto leitores se confundiam e, "cheios de interesse", subiam as escadas da Redação "para uma explicação", –nas palavras do "A Noite"–, Owen Mussolin, nascido no interior paulista, mudava-se para a Itália com a família.

Lá, conheceu revistas de passatempo como a "Enigmistica Moderna", que inspirariam a criação da "Recreativa", em 1950. De volta ao Brasil, Mussolin pai dividia-se entre o expediente como bancário, do extinto Banespa, durante o dia, e editor de revistas de passatempo, à noite.

Lalo de Almeida/Folhapress
Dicionários feitos à mão por Owen Mussolin, fundador de editora especializada em palavras cruzadas
Dicionários feitos à mão por Owen Mussolin, fundador de editora especializada em palavras cruzadas

Sob o pseudônimo de Esopinho –referência, explicam os filhos, ao autor das fábulas–, Owen publicou o "Pequeno Dicionário de Monossilábicos e Abreviaturas" e o "Dicionário de Alquimia, Cabala e Fôrças Ocultas".

Sua maior obra, porém, jamais foi lançada: um dicionário com cerca de 100 mil entradas (um quarto do que hoje tem o Houaiss), escrito à mão com caneta esferográfica ao longo dos anos 1950.

A ALMA DO NEGÓCIO

Organizado em 11 cadernos do tipo brochura –com a marca do folhear dos dedos desgastada no rodapé, guarda definições como "a alma do negócio", para "propaganda"–, o vernáculo orienta até hoje o trabalho dos filhos.

Digitalizada desde 2003, a criação de uma cruzadinha segue os princípios do tempo em que era feita à mão. Ou seja: começa-se digitando uma palavra (talvez "peremptoriamente") e a partir dela um computador gera um diagrama e propões combinações.

Se agora o jogo é feito em minutos –há meio século, podia levar uma semana–, o fechamento ainda é artesanal: a máquina adora propor siglas misteriosas ou verbetes que caíram em desuso como "ababelar" (embaralhar, misturar).

BBC
Britânico pede a namorada em casamento com palavras cruzadas do 'Times'
Britânico pede a namorada em casamento com palavras cruzadas do 'Times'

Então o próprio cruzadista garimpa soluções –como nos tempos em que Luciano Mussolin valia-se de um dicionário de rimas para buscar, por exemplo, palavras de cinco letras terminadas em "ar".

"O desafio é buscar uma palavra que seja conhecida, mas que não ocorre na hora que você quer", diz Paulo Durante, 51, primo dos Mussolin que trabalha na "Recreativa".

APOSENTADOS

Não que jogos feitos à mão estejam de todo abolidos: Luciano abre uma gaveta cheia de colaborações de leitores, que se animam a mandar suas próprias cruzadas pelo correio –feitas, por vezes, à régua em folhas de cadernos universitários. "Já recebemos cruzadas em papel de pão e até em higiênico", conta o cruzadista.

O que também não muda são os leitores: 85% dos 10 mil assinantes da revista têm mais de 60 anos e 64% deles são aposentados. Em bancas, a empresa vende mais 40 mil exemplares mensais, com tiragem de 150 mil.

Já a marca Coquetel, da Ediouro, contabiliza 20 mil assinantes e tiragem de 1 milhão de exemplares. Procurada pela reportagem, a empresa não quis dar detalhes de como funciona seu sistema de cruzadas.

O que preocupa os herdeiros de Esopinho é a falta de renovação de público: "A gente ainda tem respiro por conta da fidelidade dos leitores", diz Durante. Tão fiéis que, conta, chegam a renovar a assinatura mandando folha de cheque em branco e ligam agradecendo a companhia que o passatempo proporciona.

DESAFIO BUSCA O MELHOR JOGADOR DO PAÍS

De 30/9 a 4/10, a cidade paulista de Serra Negra recebe o 18º Encontro Brasileiro de Cruzadistas (informações no tel. 0800-7044189). O evento costuma reunir cerca de cem pessoas e realiza uma disputa para coroar o melhor jogador do país -o troféu atualmente é do funcionário público paulistano Paulo Joaquim, 56 anos, que resolve uma cruzadinha nível profissional em cerca de 2,5 minutos.


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