Folha de S. Paulo


Clássico policial de Raymond Chandler volta com nova munição

A literatura policial já possuía uma ficha corrida bastante extensa em 1939, mas naquele ano um senhor de meia-idade levou munição nova ao gênero.

Vindo de uma carreira arruinada no ramo petrolífero, o americano Raymond Chandler tinha 50 anos quando publicou seu primeiro romance, "O Sono Eterno".

O livro não trazia mais violência, corpos baleados ou loiras fatais que os similares do gênero, mas tinha dois diferenciais poderosos –o estilo de Chandler e um grande personagem, o detetive particular Philip Marlowe.

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O escritor Raymond Chadler em foto dos anos 1940
O escritor Raymond Chadler em foto dos anos 1940

"O Sono Eterno" volta agora às livrarias, com tradução e prefácio do escritor Braulio Tavares ("A Máquina Voadora"), que coordena a reedição da obra de Chandler (1888-1959) pela editora Alfaguara.

A nova edição do livro traz cartas e um ensaio inédito no Brasil, no qual Chandler trata da relação entre os roteiristas e os estúdios de Hollywood.

Considerado por muitos o mais brilhante escritor policial, ele foi um dos responsáveis por mostrar que o gênero também poderia ser uma forma de arte.

"Chandler foi, nos seus melhores momentos, o 'melhor de dois mundos', juntando a objetividade, ritmo e impacto da literatura popular com uma finura psicológica e um torneado de frase que indicavam a presença de alguém com um estofo literário mais sólido", explica Tavares.

"O Sono Eterno" apresentou o detetive Marlowe ao mundo. O personagem virou um ícone da ficção policial, inúmeras vezes copiado e parodiado.

Era um tipo corajoso, ríspido, solitário, com um pé atrás em relação às mulheres, bom de copo, último homem honesto em uma Los Angeles tomada pela corrupção.

Nesta sua primeira aparição, é contratado por um velho milionário para investigar um caso de chantagem envolvendo as lindas e amalucadas filhas dele, Vivian e Carmen. É o início de um caso que envolverá assassinatos, pornografia e jogos.

O enredo é movimentado, mas a força do relato vem mesmo do poder narrativo de Chandler. Ele era mestre na descrição de ambientes e personagens, na criação de diálogos e metáforas. Em poucas palavras dava conta de comportamentos complexos e os imprimia na memória do leitor com ritmo e humor.

No começo de "O Sono Eterno", Marlowe, narrador de todos os romances de Chandler, se descreve: "Estava limpo, impecável, barbeado e sóbrio, e não estava ligando se alguém percebia".

ROTEIRISTA ENFURECIDO

Chandler escreveu alguns roteiros nos anos 1940 e 1950 e descreveu em termos bastante cáusticos o limitado poder de um roteirista sobre o resultado final do trabalho.

"Os roteiristas são contratados para fazer roteiros sob a suposição de que possuem um dom especial e em seguida são impedidos de levá-lo a efeito com alguma independência, sob a teoria de que não sabem nada sobre como fazer um filme", escreveu no ensaio "Roteiristas de Hollywood", de 1945.

O americano escreveu a trama de dois clássicos dirigidos por Billy Wilder e Alfred Hitchcock. A relação foi conturbada com os dois cineastas.

Detestou a rigorosa rotina de criação do roteiro de "Pacto de Sangue" (1944), o que foi agravado pelo constante clima de tensão com Wilder, a quem invejava pela energia e juventude –o diretor era quase 20 anos mais novo.

O trabalho com Hitchcock no filme "Pacto Sinistro" (1951), inspirado em romance de Patricia Highsmith, também foi traumático.

"Ele [Hitchcock] sacrificava a lógica dramática em nome dos efeitos de câmera", queixou-se. Chandler achava Hitchcock chato. Hitchcock achava Chandler sensível demais. A relação degringolou de vez depois que o roteirista, aos berros, chamou o diretor de "gordo desgraçado".

"Chandler era um personagem difícil. Pavio curto, irascível, sem papas na língua. Tinha um profundo senso ético e (tendo sido executivo na área do petróleo, antes de virar escritor) um faro infalível para tudo que fosse desonestidade, tramoia; os executivos o respeitavam porque ele dizia na cara deles o que pensava deles. Era o único funcionário dos estúdios que não tinha nada a perder, pois além de não pretender fazer carreira lá dentro era um escritor, um intelectual, e considerava-se superior a todo mundo lá dentro", afirma Tavares

Outra anedota famosa do escritor envolve a adaptação de "O Sono Eterno" para o cinema. O romance originou outro clássico, o filme "À Beira do Abismo" (1946), dirigido por Howard Hawks. O roteiro foi escrito por uma trinca poderosa: o Nobel William Faulkner, Leigh Brackett e Jules Furthman.

Chandler não participou da adaptação, mas foi consultado quando uma dúvida tomou de assalto a equipe: quem, afinal, matou o motorista Owen Taylor na história?

O autor, que assumidamente era um escritor pouco interessado em enredos, mandou um telegrama com a resposta: "Eu não sei".

O SONO ETERNO
AUTOR Raymond Chandler
TRADUÇÃO Braulio Tavares
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 34,90 (256 págs.)


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