Folha de S. Paulo


Jerry Seinfeld cativa a internet comprando café com comediantes

"Sou um cafetão, sou um cafetão".

Ainda que essas palavras não pareçam combinar com quem as tenha dito, inconfundivelmente o homem que as proferiu era Jerry Seinfeld, com sua voz empolgada, subindo e descendo como um alarme de carro.

Trabalhando em uma sala de edição do Brill Building, no começo de maio, Seinfeld fazia os ajustes finais de um novo episódio de sua série on-line, "Comedians in Cars Getting Coffee", gravando o áudio de uma cena que o mostra ao lado de Steve Harvey, circulando por Chicago em um conversível Chevrolet Bel Air 1957.

Como os monólogos ao vivo e a consagrada série "Seinfeld" para a rede NBC, a produção de "Comedians in Cars Getting Coffee" (que disponibilizou a nova temporada em 3 de junho, no canal online Crackle, da Sony) atrai a obsessão de Seinfeld por minúcias e sua tendência a ver problemas como quebra-cabeças.

Sobre seu programa na internet, ele diz que, ao colocar as peças nos lugares certos, "você consegue fazer dela alguma coisa que na verdade não é - mas quase foi".

Os episódios acelerados de "Comedians in Cars Getting Coffee" acompanham as conversas se, roteiro de Seinfeld com colegas e amigos, como Jon Stewart, Tina Fey e Sarah Jessica Parker.

A atração ajudou o criador a encontrar o próprio espaço no mundo pós-internet, em uma cultura pop que poderia ter seguido adiante sem ele.

Seinfeld, 61, vive um momento no qual poderia simplesmente descansar e aproveitar o inesperado valor on-line de suas realizações do passado.
No mês que vem, o serviço de vídeo sob demanda Hulu começará a oferecer as nove temporadas de "Seinfeld", como parte do esforço para combater concorrentes como a Netflix e a Amazon.

A transação, que aparentemente envolveu pagamentos entre US$ 130 milhões e US$ 180 milhões, vai tornar Seinfeld, cocriador da série e titular de uma parte de seus lucros, ainda mais rico.

Mas ele preferiu tomar um projeto menor, que poderia facilmente ter sido realizado sem grande empenho, e se dedicar completamente a ele, transformando "Comedians in Cars Getting Coffee" em uma potência inesperada na Internet.

Os episódios do programa já foram assistidos online mais de 100 milhões de vezes, desde a estreia, em 2012. A série agora é parte central das ambições da Sony de tornar o Crackle um combatente de peso na arena do conteúdo on-line.

Embora fosse de esperar que a classe mais jovem de humoristas que chegaram à maturidade na internet – como Aziz Anzari, Amy Schumer ou Chris Hardwick – se adaptasse facilmente ao formato, Seinfeld não sabe dizer exatamente por que ele está se dando bem com o conteúdo digital quando seus colegas de idade - por exemplo, David Letterman ou acólitos como Chris Rock - preferem se manter distantes dele.

Falando em termos gerais sobre humoristas, Seinfeld diz que não existem dois caminhos iguais e que os astros estabelecidos podem ensinar pouca coisa uns aos outros.

"Você pode dizer que os primeiros dez anos de uma carreira são muito parecidos", ele afirma. A esta altura, diz, "não posso aprender nada estudando a carreira de Jay Leno, Louis C. K. ou Chris Rock. Não há maneira de usar como modelo aquilo que eles fazem. Precedentes não ajudam".
Ainda que aplique sua abordagem para o trabalho com o stand-up ao trabalho on-line, Seinfeld nunca presumiu que o sucesso nos palcos e na TV pudesse garantir igual êxito no novo ramo.

"A internet é a mídia que menos perdoa", ele afirma. "Mesmo em um clube de comédia, a audiência inteira não vai se levantar e sair ao mesmo tempo. Mas na internet isso pode acontecer."

E, se os detratores desejam descartar sua mais recente paixão como um projeto de ego, Seinfeld diz que aceita o rótulo alegremente.

"Qual é o problema disso? É o que deveríamos fazer. Se não houver vaidade, é o fim do show business."

Na tarde seguinte, Seinfeld estava almoçando em um restaurante do West Side, vestido casualmente, de camiseta, com os cabelos aparados bem curtos e o seu clipe de dinheiro largado sobre a mesa diante dele. (Uma nota de US$ 1, visível do lado de fora, ocultava sabe-se lá quanto dinheiro por dentro.)

Ele se comporta de modo relaxado, mas não tem medo de dizer o que pensa. Seu senso de humor é mais cortante que o de seu personagem dos anos 90.

Admitindo livremente que não se prepara previamente para as conversas com celebridades em "Comedians in Cars Getting Coffee", ele conta, rindo, que "não há nada que realmente queira saber".

O programa foi criticado pela falta de convidados não brancos e não homens, e por sua suposta incapacidade de se relacionar com telespectadores que não sejam ricos como o criador da série.

Mas um vídeo promocional que Seinfeld ajudou a realizar naquela sessão de edição encapsulava seu espírito excêntrico e ao mesmo tempo pausado.

Em cortes rápidos, ao som de uma trilha jazzística animada, o vídeo o mostrava em uma série de lanchonetes e cafés, disparando observações e perguntas absurdamente precisas na direção de convidados como Stephen Colbert, Jim Carrey e Julia Louis-Dreyfus, sua antiga colega de elenco em "Seinfeld": ("Que tipo de roupa de baixo você usa? Você já percebeu que o suco de laranja agora vem com muita variedade de polpas?").

Steve Mosko, presidente da Sony Pictures Television, diz que a série é "autenticamente Jerry, e as pessoas sacam o humor mesmo que não o conheçam. Ele deixa sua marca em todos os aspectos do programa".

Seinfeld não é tecnófobo nem nerd escancarado. Usa o Twitter ocasionalmente, mas não ouve a podcasts. Expressou admiração pelo Apple Watch de outro freguês do restaurante, mas disse que prefere relógios mais tradicionais. ("Gosto das engrenagens", disse.)

Alguns anos atrás, quando começou a propor "Comedians in Cars Getting Coffee" a sites de mídia como o YouTube, Hulu e Netflix, disse ter ouvido repetidamente que ninguém assistiria a episódios com mais de dois minutos de duração. Porque planejava episódios de 10 a 15 minutos, Seinfeld recuou.

"Quanto menos você sabe sobre determinado campo. melhores as suas chances. Audácia burra é a melhor maneira de abordar um novo desafio", ele afirma.

Na Sony, encontrou um lar receptivo. A companhia cuida da distribuição de "Seinfeld" e não hesitou em lhe dar a autonomia que ele buscava.

Mas o motivo para que Seinfeld deseje manter presença na web é uma pergunta mais espinhosa.

Ainda que seu maior sucesso seja anterior à internet moderna, a estética de "Seinfeld", celebrada por seus exageros de especificidade e bordões curtíssimos como "serenidade já" ou "encolhido", parecia feita sob medida para um ambiente on-line que vive de memes insulares e de fácil digestão.

"É localizar aquelas coisinhas que tornam 'Seinfeld' imortal, enquanto as sitcoms genéricas não duram", diz Jason Richards, o responsável por @seinfeld2000, uma conta de Twitter que usa as tiradas dos personagens da série para comentar sobre eventos atuais. "É quase como se, sem querer, ele tivesse antecipado a cultura da Internet."

(Seinfeld descartou a ideia como "exagero", dizendo "você realmente está chutando longe, nessa".)

Os amigos de Seinfeld dizem que existe alguma peça irredutível nele que anseia por reinvenção e experiências inéditas.

O ator James Spader, que conhece Seinfeld desde os anos 90, diz que "desde que o conheço, ele propositadamente complica sua vida em nível insuportável, de novo e de novo e de novo, até que isso o derrube".

Spader acrescenta que "ele não consegue resistir à sua curiosidade e entusiasmo pelo novo".

Ainda que Seinfeld tenha recentemente participado de "Top Five", filme de Chris Rock, e da série "Louie", de Louis C. K., bem como do último episódio do programa de David Letterman – presenças em que ele zombou de seu personagem oficial, confiante e privilegiado –, ele compreende que manter a relevância cultural é algo que requer trabalho constante.

Em sua profissão, afirma Seinfeld, "a aceitação da audiência é a moeda circulante". E ele admite que "fazia algum tempo" que não se "conectava a uma audiência".

Depois do apogeu de "Seinfeld", ele fez um especial de comédia para a HBO e dirigiu o documentário "Comedian". "Bee Movie", filme de animação que ele realizou em 2007, se saiu razoavelmente nas bilheterias, faturando US$ 287 milhões em todo o planeta, mas não teve impacto duradouro.

E "Marriage Ref", seu reality show para a NBC, que ele produziu e do qual participou esporadicamente em 2010 e 2011, foi um autêntico fiasco.

"Peguei os destroços calcinados daquele programa e os reconstruí como minha nova série", conta.

"Humoristas são as melhores pessoas com quem conversar", ele explica. "Mas se há uma audiência, eles sempre tentam impressionar a audiência. Por isso decidi tirá-los do estúdio e quem sabe mostrar como são interessantes."

Quando fechou contrato informal com a Sony para "Comedians in Cars Getting Coffee", Seinfeld não sabia se a empresa estava mesmo interessada na ideia ou só em mantê-lo na casa.

"E daí?", Seinfeld disse. "Se fosse só pela minha fama, é algo que conquistei também."

Mas quando veiculou os primeiros episódios, Seinfeld (que diz adotar uma abordagem nada sentimental, matemática e de "modelagem 3D" quanto a carreiras no show business) admite ter imaginado que seu passado sucesso talvez tivesse deixado a audiência cansada dele.

"Quando você é conhecido, aceito. há uma sensação de 'o que você quer agora', ao lançar um projeto novo. Quanto dinheiro mais você quer, quanto tempo mais você quer?"

"Por isso", ele acrescemta, "imaginei que seria legal dar alguma coisa de graça às pessoas". (Um patrocínio da Acura cuida desse lado, hoje.)

Christopher Lane/The Guardian
O comediante Jerry Seinfeld, em 2013, falava sobre o seu 'Comedians In Cars Getting Coffee'
O comediante Jerry Seinfeld, em 2013, falava sobre o seu 'Comedians In Cars Getting Coffee'

O canal Crackle, que oferece também download de filmes de cinema e programas de TV, agora considera a série como base sobre a qual construir sua identidade de marca e concorrer com outras redes online e de TV a cabo. Ela começou a produzir projetos de séries e filmes com astros estabelecidos, como Dennis Quaid, Bryan Cranston e David Spade.

"A série não é um sucesso só porque é Jerry que a apresenta", diz Eric Berger, diretor geral do Crackle. "Ele realmente aplicou todos os seus anos de experiência no ramo para criar conteúdo que só poderia vir de alguém como ele."

Para Seinfeld, uma das recompensas é receber os dados ridiculamente detalhados que só a Internet pode prover sobre sua série on-line. Ele disse que ela está cada vez mais sendo assistida em televisores convencionais, com aparelhos como o Roku ou Apple TV, e é especialmente popular junto aos espectadores dos 25 aos 34 anos, alguns dos quais nem tinham nascido quando "Seinfeld" estreou.

Ele parecia agradavelmente atônito pelo interesse do Hulu em seu velho seriado, definindo o acordo como "insano".

"Será que convém mencionar as outras séries em cartaz na época?", Seinfeld perguntou, brincalhão. "'Unsolved Mysteries', 'Alf, o ETeimoso'? Por que ninguém as está comprando para o Hulu?"

Tendo ganhado ímpeto e flexibilidade para produzir novos episódios de "Comedians in Cars Getting Coffee" sempre que desejar, Seinfeld diz que não sabe exatamente como planeja usar essa liberdade.

"Pode ser divertido descobrir qual é a sensação de arruinar um projeto. Não é algo que eu tenha feito. Tenho curiosidade a respeito. Quero saber como as coisas são para os outros."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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