Folha de S. Paulo


Centenário de Marguerite Duras tem seminários, filmes e peças

"Era a coisa mais aterrorizante e inesperada. E ela sabia e aceitava aquilo", lembrou a escritora Marguerite Duras numa entrevista. "Queria virar o rosto, mas ao mesmo tempo sabia que tinha de olhar na direção daquele barulho no chão e ver a morte daquela mosca. Escrevemos para ver morrer uma mosca."

Duras, autora francesa morta aos 81, em 1996, lembra esse episódio banal como metáfora para forjar um estilo literário. Era a ideia de que tudo ao redor é escrita e reverbera em seus textos sempre arquitetados sobre imagens secas e cruas, como o inseto que agoniza no assoalho.

Essa voz única, que se firmou como uma das maiores da literatura do século 20, é relembrada agora no centenário de Duras. Nascida em 1914 no Vietnã, quando o país ainda era uma colônia francesa, a autora é tema de seminários, novos estudos, festivais de cinema e terá ainda uma de suas peças, "Agatha", encenada em São Paulo.

JM. Trouville/Divulgação
Marguerite Duras no set de 'Jaune Le Soleil' em 1971 em Neauphle-le-Château, na França
Marguerite Duras no set de 'Jaune Le Soleil' em 1971 em Neauphle-le-Château, na França

Outra data redonda são os 30 anos do lançamento de "O Amante", livro que rendeu fama mundial à autora. A história de uma garota na Indochina que vive seu primeiro amor com um chinês endinheirado fora apontado como romance autobiográfico, uma interpretação rasteira na opinião de alguns críticos.

De certa forma, Duras sempre misturou verdade e ficção em suas obras. Nos 30 romances que escreveu, parecia contar sempre a mesma história com pequenas variações, numa investigação da própria solidão, ou o que ela mesma chamou de uma busca por sua "sombra interna".

"Ela passa o tempo inteiro questionando esse lugar que ela mesma desconhece", diz Maurício Ayer, especialista na obra de Duras. "É um trânsito entre memória, invenção, ficção, entre o que ela escolhe esquecer, suas lembranças e o que esquece de fato."

Nesse ponto, as rememorações subjetivas de Duras chamaram a atenção de psicanalistas, que viam seus livros como ilustrações potentes do que acontece em sessões de terapia, de atos falhos a versões contraditórias dos mesmos fatos e lembranças.

"Todos os livros dela falam dessa impossibilidade do encontro com o outro, essa solidão existencial", diz Dominique Fingermann, psicanalista que está escrevendo um novo livro sobre Duras. "É o desejo, o amor, o gozo, tudo aquilo que faz uma pessoa procurar um psicanalista."

Mas para além do divã, Duras forjou uma espécie de escrita feminina primordial. Num francês às vezes desconcertante, que se aproxima da sintaxe das línguas orientais, ela inventou uma voz mais livre das convenções literárias, que comparava ao discurso das "bruxas" medievais, ou mulheres que enlouqueciam.

"Ela vai caminhando para um silêncio na hora de escrever", diz Maria Cristina Vianna Kuntz, que escreve um novo livro sobre a autora e organiza um seminário agora na USP e no Mackenzie. "É um silêncio intenso, quase total."

Duras falava em estar num buraco, na "solidão inviolável" do escritor, da qual a única saída era a escrita. Daí dizer que escrever era um ato selvagem, íntimo da "selvageria anterior à vida" e manifestação da "vulgaridade massificada da sociedade".

"É uma escrita que se impõe na relação com a realidade", diz Glória Carneiro do Amaral, também especialista na obra da autora. "Ela criou uma nova forma de fazer literatura, desmistificando uma série de elementos."

MELODIAS SOBREPOSTAS

Também criou uma nova forma de fazer cinema, dizendo criar uma "gramática bem primitiva" para as telas.

Enquanto seus livros eram sucessões de imagens atravessadas por falas esparsas, seus filmes —19 ao todo, além do roteiro de "Hiroshima, Meu Amor", de Alain Resnais— foram um desdobramento visual disso, com cenas silenciosas e vozes extra-quadro que delineiam a ação.

"Ela cria uma textura de sonoridades, cenas com várias camadas, uma polifonia", diz Ayer. "Ela trabalha cada elemento como coisa independente, numa orquestração de melodias sobrepostas. É a dissociação total entre som, luz, voz e imagem."

CEM ANOS DE DURAS

SEMINÁRIOS
Segunda (19) e terça (20), das 9h às 18h15, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tel. (11) 3091-4850. Na quarta (21), na Universidade Mackenzie, r. Itambé, 135

Inscrições pelo e-mail monitoriadofrances@gmail.com; de R$ 10 a R$ 20

CINEMA
Neste sábado (17) e domingo (18), exibições de "Hiroshima, Meu Amor", "India Song", entre outros na Cinemateca Brasileira, no lgo. Sen. Raul Cardoso, 207. Programação em
www.cinemateca.gov.br

De segunda (19) a sexta (23), festival com "As Mãos Negativas", "Aurelia Steiner (Melbourne)", entre outros no Cinusp, r. do Anfiteatro, 181. Horários em usp.br/cinusp

TEATRO
Na terça (20), às 20h30, encenação de "Agatha", com Elisa Fingermann e Paulinho Faria no teatro Aliança Francesa, r. Gal. Jardim, 182, tel. (11) 3017-5699; R$ 15


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