Folha de S. Paulo


Crítica: Trama multicultural desanda na América em 'A Cozinha da Alma'

No Brasil, em poucas cidades há diversidade cultural para valer --estrangeiros residentes, várias línguas faladas ativamente, visões de mundo contrastantes.

Mal experimentamos diversidade na TV, até há pouco monopolizada pela Globo, que homogeneizou a cultura cotidiana. Por isso, nossa percepção do multiculturalismo é restrita.

Mas nos centros europeus o couro come. Sedes de impérios novos e antigos, França, Inglaterra ou Alemanha ouvem e veem tipos humanos os mais variados, dia a dia.

Digamos: uma família de gregos vivendo em cidade grande da Alemanha. Quando o filho menor completa 18 anos, os pais retornam à pátria saudosa (sem jamais terem falado bem alemão), deixando também o outro filho, metido com negócios escusos e droga, sendo então preso.

O menor, imaturo, abandona a escola para tentar emprego; trabalha em um restaurante de um filho de alemã com italiano, em que batalham uma iugoslava e um árabe. Depois anda por empregos similares, o bar de um prostíbulo e a cozinha de um navio, e pelo caminho cruza com ganense, turco, hispano-americano e até alemão.

Assim é Zinos, o protagonista de "A Cozinha da Alma", novela de Jasmin Ramadan, ela própria representativa desse mundo, filha de alemã e egípcio. Narrada com velocidade e visão de mundo adolescente, a trama originou o filme "Soul Kitchen" (2009), dirigido por Fatih Akin, alemão de ascendência turca.

Divulgação
Cena do filme Soul Kitchen, do diretor Fatih Akin, inspirado em 'A Cozinha da Alma'
Cena do filme Soul Kitchen, do diretor Fatih Akin, inspirado em 'A Cozinha da Alma'

A edição brasileira carrega problemas. A editora optou por não traduzir os diálogos em inglês do original. Ok.

Mas há oscilações incorretas: um filme, evocado em cena importante, se chama "Rápido e Indolor" (título, aliás, dirigido por Akin). Páginas adiante, tem o nome "Kurz und Schmerzlos", em alemão.

O sobrenome de Zinos quase sempre se escreve Katzanzakis; mas em cena crucial vira Kazantzakis, como o autor de "Zorba, o Grego" --citado no texto, por sinal, mas como Alexis Zorbas. E há imprecisões de tradução.

No conjunto, a narração tem boa capacidade de ilustrar a experiência quase anômica dos jovens multiculturais em sua errância anódina pelo planeta, tendo como âncora pouca coisa mais que drogas, sexo casual e música pop, onipresente no relato.

Usa de realismo vivo para as cenas na Europa, mas prefere a fantasia ligeiramente paranoica quando o enredo desembarca na América, reforçando um clichê que põe em dúvida tratar-se de uma renovação válida na narrativa europeia em nosso tempo.

LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na UFRGS.

A COZINHA DA ALMA
AUTOR Jasmin Ramadan
EDITOR 8Inverso
TRADUÇÃO Michael Korfmann e Miriam Inês Wecker
QUANTO R$ 42 (242 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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