Folha de S. Paulo


"Busca pelo novo absoluto é fraca e frágil", diz curador italiano que remonta mostra de 1969

Em paralelo à Bienal de Veneza, a Fundação Prada exibe agora uma das mostras mais elogiadas nesta temporada das artes visuais.

Com curadoria de Germano Celant e projeto expositivo do badalado arquiteto holandês Rem Koolhaas, vencedor do prêmio Pritzker, "Quando Atitudes se Tornam Forma" é um remake, fiel até o último detalhe, da mostra de mesmo nome organizada pelo curador suíço Harald Szeemann no Kunsthalle de Berna em 1969.

Reunindo alguns dos mestres da arte povera, movimento italiano dos anos 1960, e da arte conceitual e minimalista dos Estados Unidos e da Europa, a mostra foi, na época, uma mudança de paradigma no que significava montar uma exposição.

Com obras de Joseph Beuys, Alighiero Boetti, Mario Merz, Carl Andre, Robert Ryman, Sol LeWitt, entre outros nomes hoje considerados sagrados na história da arte, a mostra arrebatou público e crítica e vem levantando um debate sobre o que significa reencenar uma exposição, uma tendência em alta no circuito mais do que nunca.

Depois da abertura da mostra, que teve filas dando volta nos quarteirões antiquíssimos de Veneza, Germano Celant, presidente da Fundação Prada e curador de "Quando Atitudes se Tornam Forma", deu entrevista à Folha. Leia a seguir trechos da conversa.

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Folha - Por que você decidiu reencenar uma exposição tão importante na história da arte?
Germano Celant - Há muitas razões para a reconstrução de "Quando Atitudes se Tornam Forma" no jeito em que foi montada. Começando pelo fato de que a história da arte não pode ser analisada apenas por meio de objetos ou artefatos remanescentes, considerados entidades isoladas e privadas de relação com seus contextos. Se estudarmos a história da arte desde 1863, notaremos que todas as expressões que marcaram época estavam conectadas ou integradas a um edifício, com uma relação com teto e paredes. A arte formava um todo único com a arquitetura. Com o advento da revolução industrial e da sociedade de consumo, a obra é destacada de seu ambiente e se torna um produto móvel e autônomo em relação ao lugar que a abriga. Esse fenômeno de descolamento do espaço levou os artistas a criar um "ambiente" deles, ou seja, as exposições.

Em 1863, nascem os primeiros salões [de arte], que podem ser considerados o contexto em que a arte moderna, e depois contemporânea, encontra seu "lugar" de existência. Assim, se antes a igreja ou palácio abrigavam intervenções artísticas, agora os artistas colocam suas obras e objetos à disposição do grande público em exposições, portanto, de modo mais democrático. Eles se tornaram profissionais que levam a obra realizada no ateliê para o mercado, para exposições ou feiras.

Se isso é correto, a história da arte de 1863 em diante deve começar a estudar, não só por intermédio de imagens, o que aconteceu nas mostras criadas e organizadas pelos próprios artistas, porque o ato de expor sempre fez parte de sua expressão. A mostra, de fato, é o momento em que os artistas põem em relação as obras com outras obras e com o contexto externo. Como historiador da arte, penso que seja útil e fundamental estudar e reapresentar as mostras criadas no contexto das vanguardas históricas, não só verificando as montagens em plantas e fotografias, mas também por meio de sua experiência direta, como acontece com quadros e esculturas.

É daí que surge o desejo de "mostrar uma mostra", como objeto de estudo de um museu ou instituição. Naturalmente tal atravessamento concreto no tempo pode ser feito a partir dos primeiros anos do século 20, mas as dificuldades seriam enormes. Já pensou na possibilidade de reconstruir a mostra "0,10" de Maliévitch, com dezenas e dezenas de obras em uma sala de poucos metros quadrados? É impossível! O mesmo vale para reconstruções e revisões de mostras do cubismo, do futurismo, do dadaísmo ou do surrealismo. Portanto, a intenção da Fundação Prada, que eu dirijo, foi focar numa exposição que mudou a metodologia expositiva: "Quando Atitudes se Tornam Forma", curada por Harald Szeemann em Berna em 1969.

Essa mostra foi um exemplo de colaboração total entre artistas e curador, uma ruptura com a tradição clássica do museu, propenso a controlar e bloquear qualquer liberdade expositiva, como usar água, fogo, eletricidade ou outros elementos potencialmente perigosos. Sem contar que os artistas, na época, não estavam em competição, mas colaboravam entre si. Conseguiam fazer suas obras conviverem num espaço mínimo encontrando um equilíbrio e um respeito pelo território um do outro que hoje é impensável.

Que impacto você acha que essa remontagem tem sobre o mundo da arte atual?
O efeito sobre o nosso presente é certamente o de uma experiência perdida, de um momento em que as energias circulavam livremente. Os valores econômicos não existiam, porque não existia mercado para essas expressões artísticas. Temos, portanto, um feedback muito emocionante. Pelo menos eu penso assim, já que estive presente em Berna e fui autor do discurso inaugural dessa exposição. Vejo tudo isso entrelaçado a uma memória do tempo e daquele período. Não é nada nostálgico, apenas algo forte e incomparável aos tempos de hoje, em que as obras são isoladas e protegidas por causa de seus valores de seguro.

Na época, as peças ficavam no chão a poucos centímetros uma da outra ou eram mesmo destruídas porque os artistas não tinham meios para retirá-las do espaço ou remontá-las. Sem contar que os elementos, mesmo das obras pictóricas, eram materiais encontrados na rua, como folhas de papel (Robert Ryman), feltro e margarina (Beuys), vidros quebrados (Merz) ou mesmo em galpões abandonados, fragmentos de tubos fluorescentes (Sonnier e Jenney), fragmentos de corda ou redes (Flanagan e Saret), pedaços de bambu ou montes de cinzas (Zorio e Ruthenbeck). Cada um podia realizar sua criação sem investir nela nada além de seu tempo e esforço físico. Com respeito à preciosidade e outros valores mercantis da arte atual, este fazer é totalmente liberador: não prevê controles, orçamentos, assistentes, fundos. A grande força de Szeemann foi intuir a potencialidade dessas pesquisas e deixar que elas se expressassem numa instituição suíça, como o Kunsthalle [centro cultural independente em Berna], simplesmente para se livrar da burocracia dos museus em nome de sua radicalidade.

Muitas das questões centrais das obras agora expostas ainda persistem e têm grande força no circuito artístico. Que pontos da mostra você acha mais fortes?
Acredito que o ponto forte não sejam obras singulares, mas o conjunto delas. É o todo que surpreende por sua intensidade visual e plástica. As obras criam um trânsito de umas para as outras, sem medo de se negar no confronto com as demais. [Bruce] Nauman convive com [Alighiero] Boetti e [Mario] Merz, Sarkis com [Jan] Dibbets e Anselmo [Zorio], [Richard] Serra com [Robert] Ryman e Artschwager É um fluxo contínuo de imagens que comove o olhar, tanto que o espectador se sente circundado e atravessado.

Com relação aos aspectos espaciais dos museus atuais e das bienais, o território usado por Szeemann era extremamente reduzido, não eram nem mil metros quadrados. Contava mesmo o acúmulo de presenças e coisas, inéditas e surpreendentes, que formam um núcleo energético potentíssimo.

É evidente que esta percepção reflete também o fato de a mostra ter se tornado um mito nas últimas décadas, um momento perdido no tempo, que diversas gerações viram só em fotografias, muito estudada e elogiada, mas nunca experimentada ao vivo. Revisitá-la em Veneza foi uma surpresa para os sentidos e a mente, ao passo que reconstrui-la foi uma aventura porque tinha de ser exatamente como foi em 1969, só que dentro de um palácio do século 18, em Veneza no ano de 2013. Felizmente a ideia, produzida por [Rem] Koolhaas com a estratégia de duplicar, de modo arqueológico, as paredes do Kunsthalle de Berna dentro das paredes cheias de afrescos do palácio Ca' Corner della Regina permitiu realizar essa viagem no tempo, preservando ao mesmo tempo a sensação de estarmos sobre a baía de Veneza.

Essa mostra não causa um curto-circuito quando vista em paralelo à Bienal de Veneza agora em cartaz? Aponta uma crise na produção atual por ser, em muitos aspectos, mais forte que a produção contemporânea?
Não cabe a mim dizer sim ou não. Acredito que a reencenação de "Quando Atitudes se Tornam Forma" serve para despertar a consciência de um "não saber" histórico que está penalizando o sistema da arte contemporânea. A busca pelo novo absoluto é extremamente fraca e frágil e não se sustenta se as raízes da arte não são estudadas ou revisitadas. Essas raízes arriscam indicar uma origem ou uma sensação de "já feito" que devem ser confrontadas pelos jovens artistas, ao mesmo tempo que a acumulação está tornando obeso o corpo das pesquisas atuais. A inflação produtiva de hoje se deve ao mercado global que tem necessidade de atender uma clientela alargada, muito superficial e muitas vezes ignorante da história.

A arte não tem como pano de fundo uma superfície branca, como são as paredes das galerias e das feiras e também das bienais e trienais. Ela está ancorada num contexto, numa situação e numa relação com o tempo e a história. Para fazer arte, é preciso informar e se informar sobre o que aconteceu, não para apagar o presente, mas para oferecer ao presente a oportunidade de não ser vazio, um vácuo, pronto para responder a qualquer demanda de consumo mercantil. Parte da economia da arte deve ser investida em pesquisa e análise para torná-la mais forte e crível, jogando num limbo os imitadores e os superficiais.

Quais foram os maiores desafios na remontagem dessa exposição?
A pesquisa dos materiais originais foi o elemento crucial para reconstruir e revisitar a mostra. Junto da equipe da Fundação Prada, com a colaboração do Getty Research Institute, de Los Angeles, que possui o arquivo de Szeemann, conseguimos analisar mais de mil imagens das quais retiramos dados concretos para identificar as obras, os detalhes arquitetônicos e colaborações da época. Em diálogo com o artista Thomas Demand, conseguimos reconstituir uma imagem precisa de cada detalhe artístico e espacial, além de encontrar e pegar emprestadas 90% das obras da mostra. Os 10% ausentes ficaram de fora porque se perderam ou porque era impossível o transporte, por serem peças frágeis demais. Mesmo assim, a ausência dessas peças em Veneza está indicada por linhas traçadas no chão onde estariam, acompanhadas da fotografia da obra, de modo que o espectador tome nota de sua presença na mostra de 1969.

Você vê a reencenação de mostras ou o foco na história das exposições como uma tendência hoje?
Não sei se essas reencenações se tornarão um método, mas certamente se sente a necessidade por parte dos museus de não continuar a contar a história refletida apenas em objetos e coisas isoladas, mas por meio de conjuntos. No circuito artístico, a "relação" entre as peças já faz parte dos elementos a serem expostos. Especialmente quando esse conjunto de obras foi organizado por um artista, ou é o resultado de um estrudo forte ou da interpretação intensa de um curador que conseguiu dar a esse grupo de obras uma leitura expositiva inédita e nova. Certamente os museus, de agora em diante, deverão considerar o método de expor e o trabalho dos curadores ao longo do tempo como parte de suas histórias, além de estudar e às vezes repropor esse trabalho, para fazer entender um momento linguístico na história das exposições.


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