Folha de S. Paulo


Casal sobrevivente de tragédia narra busca alucinada por cinto de segurança

Quarta-feira, 8 de junho, 23h, rodovia Mogi-Bertioga, início do trecho de serra. Um ônibus lotado de estudantes parece desgovernado e começa a ziguezaguear na pista.

Leandro se apressa e ajuda a colocar o cinto de segurança na namorada, Aline, sentada ao seu lado. O equipamento está preso debaixo da poltrona, mas ele o alcança.

Enquanto isso, no banco da frente, Carol grita angustiada que a fivela de seu cinto não fecha. Naqueles segundos de pavor, Aline insiste com a amiga para mudar de lugar. As duas costumavam viajar lado a lado no trajeto diário de ida e volta entre São Sebastião, no litoral paulista, e a universidade de Mogi das Cruzes, na Grande SP.

Carol salta para outra poltrona, mas não se sabe se enfim conseguiu colocar o cinto. No banco de trás, ainda desprotegido, Leandro segue tateando em busca da fivela. Mas já não há mais tempo. Ele sente o ônibus tombar e, num reflexo, abraça a namorada, pouco antes de o veículo se chocar contra uma rocha e se arrastar de lado por metros.

Os três estudantes de psicologia estavam no ônibus acidentado que deixou um saldo de 18 mortos, entre eles o motorista -as causas ainda estão sendo investigadas.

Aline de Jesus dos Santos, 20, teve traumatismo craniano e sobreviveu. O namorado, Leandro Amorim, 22, teve uma vértebra quebrada, traumatismo craniano e uma fratura exposta no braço, mas passa bem. A Carol -Ana Carolina da Cruz Veloso, 21 –morreu a caminho do hospital.

FORA DE CONTROLE

O ônibus fretado pela Prefeitura de São Sebastião saiu de Mogi por volta das 22h10, com 34 estudantes. Menos de uma hora depois, Aline e Leandro dormiam, quando foram acordados pelos berros dos colegas, que pediam para o motorista parar o veículo.

Amiga do casal e uma das sobreviventes, a estudante de engenharia Gabriela Leite, 18, foi quem deu o alerta: "Coloca o cinto, galera!". O grito desencadeou a busca desesperada pelas fivelas.

Leandro se lembra que, naquele momento, o ônibus estava fora de controle. Primeiro, ficou apoiado somente nas rodas da direita. Depois, passou para as da esquerda e virou, batendo na rocha e caindo em uma vala.

Com o impacto, o casal apagou. Quando abriu os olhos, Leandro estava com as pernas dentro do ônibus e o tronco do lado de fora. Reparou também que, sob o seu corpo, estava o de sua amiga, Estefani Santos, 19 -a estudante foi resgatada e levada para um hospital, onde seguia internada até sexta-feira (17).

Leandro não conseguia se levantar, mas viu os amigos que estavam em um ônibus logo atrás socorrendo os colegas feridos. Pediu ajuda. Foi retirado do veículo pelos estudantes, passando de braço em braço, em uma corrente humana. Deitado no asfalto, Leandro perguntava pela namorada e pelos amigos.

"Sentia dor no pescoço e no braço, mas vi que conseguia mover os pés. Então fiquei preocupado com os outros. Escutei as pessoas dizendo que 'tinha óbito', e não conseguia virar a cabeça", contou à Folha na última quarta (15), dia em que recebeu alta.

Ele só sossegou quando o amigo trouxe a notícia: Aline estava bem e tinha saído do ônibus andando, sozinha. Não que Aline se lembre disso. Ela perdeu a memória de certas partes do desastre. Mas o que ela se recorda é revivido todas as noites. "Não tenho conseguido dormir, tenho pesadelos e acordo assustada. Vejo tudo acontecer."

Na primeira lembrança de Aline após o impacto, ela está sentada no asfalto, com a cabeça ensanguentada. No hospital, tiveram que amarrar seus pulsos. Estava em choque e não queria que ninguém a tocasse. A atitude lhe rendeu o apelido de "rebelde" entre as enfermeiras. Saiu do hospital dois dias depois, com 13 pontos e uma cicatriz de cerca de dez centímetros, que lhe corta a testa.

"Não estou me sentindo bem com isso", diz, com vergonha da marca. Desde o acidente, só saiu de casa para ir ao posto de saúde e buscar seus pertences na delegacia. Tem sentido muitas dores, que tenta combater incessantemente com remédios, chá de camomila e maracujá.

Aline mora com a família em uma casa espaçosa, porém simples, em uma rua de barro, no pé de um morro, em Juquehy, São Sebastião.

A construção, de tijolo sem reboco e telhas de zinco, por pouco não foi totalmente destruída em fevereiro por um deslizamento de terra. O buraco que se abriu na montanha, bem como as árvores caídas -que atingiram
parcialmente a casa- ainda assustam a família, aconselhada pelas autoridades locais a permanecer "em alerta".

REENCONTRO

No dia em que a Folha visitou Aline, Leandro havia saído do hospital. Quando soube que o namorado estava em casa, a estudante decidiu ir ao salão de beleza. Queria se preparar para o reencontro. Cortou uma franja, que escondeu a cicatriz na testa. O dois começaram a namorar há pouco mais de seis meses, mas são amigos desde o colégio. Na faculdade, acabaram fazendo o mesmo curso.

Leandro, que trabalha como porteiro, escolheu psicologia "para ajudar as pessoas". Aline, porque conhecia uma psicóloga e gostava da profissão. A tragédia não deixou apenas marcas nos corpos de Aline e Leandro. Ambos querem retomar os estudos e iniciar um novo hábito: o uso do cinto de segurança.

*

O ACIDENTE

Por volta das 23h30 de quarta (8), ônibus tombou na rodovia Mogi-Bertioga (SP)

1. O ônibus seguia pela Mogi-Bertioga no sentido litoral, em trecho onde só há uma pista (existem duas pistas no sentido Mogi)

2. A neblina havia acabado após uma região da serra conhecida como "tobogã", e a rodovia tinha boa visibilidade

3. Próximo a uma curva à direita, sem acostamento, ele ultrapassou um carro, chegando a encostar no veículo

4. Nessa hora, começou a balançar, indo de um lado para o outro, prestes a virar

5. Tombou, deslizou pela pista e bateu em uma rocha na margem da via, parando de lado em uma vala

Editoria de Arte/Folhapress

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