Folha de S. Paulo


Quando o "foie" não é "gras"

Há muita gente que torce o nariz e perde o apetite quando ouve falar de vísceras na culinária. São pessoas que, permita-se o trocadilho, se sentem visceralmente incapazes de comê-las, embora elas sejam consumidas desde sempre e tenham marcado a gastronomia mundial passando por alguns aprimoramentos.

É preciso matizar que existem as vísceras internas (tripas, rins, moelas, fígado...) e outras que eu chamo de "periféricas", como orelhas, patas e rabo. Estas últimas costumam gerar menos desconfiança que as internas.

Hoje, as vísceras estão em queda no gosto popular. Inclusive têm má imagem, por causa do colesterol e do ácido úrico. Mas não estão tão distantes os tempos nos quais se recomendava, para curar a anemia, comer fígado, algo que não agradava a muitas crianças.

Fígado. Tem má fama. É sempre culpado de qualquer desajuste interno. Dor de barriga: "Deve ser o fígado..."; Coloração amarela da pele: "É capaz de ser o fígado..."; são as mazelas de ser, depois da pele, o órgão maior do corpo humano.

Mas há um fígado que ainda conta com prestígio. Me refiro ao "foie-gras", ou fígado hipertrofiado de ganso ou pato, isso que as pessoas em geral, cozinheiros incluídos, costumam chamar de "foie", embora este termo, em francês, valha para qualquer fígado.

Se quisermos nos referir a essa especialidade já conhecida pelos antigos egípcios, devemos matizar: "foie gras", ou fígado gordo. Se passarmos das aves aos quadrúpedes, o fígado mais apreciado, em efeitos culinários, é o de bezerro. Há muitas receitas para ele com abundância de cebola - caso do fígado acebolado espanhol - ou do "fegato alla veneziana" italiano. Mas minha receita favorita é francesa: o fígado de bezerra à burguesa, o "foie de veau à la bourgeoise". Lhes direi por que.

Sempre fui fã dos romances de Georges Simenon protagonizados pelo comissário Maigret, que a seus dotes policiais une a qualidade de "gourmet". Este fígado era um dos pratos favoritos do comissário na ficção, e eu o procurava a cada vez que, em Paris, ia a alguma "brasserie", perto do Quai des Orfèvres.

Aqui vai a receita da senhora Maigret, recolhida pelo crítico francês Robert J. Courtine no livro "As receitas de Mme. Maigret". É preciso banhar primeiramente um quilo de fígado de bezerra durante meia hora em água avinagrada e aromatizada com um ramalhete de ervas aromáticas, cebola e cravo a gosto e uma colherada de azeite de oliva.

Depois se doura tudo em caçarola, em um pouquinho de manteiga, com pedaços de toucinho e cogumelos pequenos e frescos. Banha-se com um copinho de conhaque, duas colheradas do caldo de bezerra e se deixa cozinhar sem que comece a ferver.

O cozimento durará de 45 a 60 minutos, ou até mais, dependendo do ponto em que se queira o fígado. Se ficar muito molho, retire o fígado e reduza a quantidade; deve ser um molho curto. Corte o fígado em pedaços grossos e sirva-o com o molho e algum detalhe verde.

Uma grande receita, um sabor de Paris que merece taças da Borgonha.


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