Folha de S. Paulo


Insensatez venezuelana

Só quem nunca experimentou o inferno do dia a dia na Venezuela ainda romantiza a revolução chavista. Não há boa-fé que resista à constatação de que o desastre geral no país decorre, em boa parte, de uma gestão inepta e corrupta.

Mas, a julgar pelo comportamento da oposição recém-instalada no comando no Parlamento, os venezuelanos continuarão carentes de líderes sensatos mesmo que se materialize a tão esperada alternância.

Desde seu triunfo na eleição legislativa de dezembro, que interrompeu 17 anos de hegemonia chavista, a aliança opositora MUD (Mesa da Unidade Democrática) prioriza agenda hostil e revanchista. No jogo de disputas internas, os moderados que haviam atraído o voto da população mais pobre tradicionalmente alinhada ao governo acabaram escanteados em favor dos radicais.

"Mudança" era o slogan da MUD, mas quem assumiu a presidência do Legislativo é um ícone da velha política: o abrasivo Henry Ramos Allup, 72. Na posse, Ramos Allup prometeu desalojar o presidente Nicolás Maduro forçando sua renúncia ou antecipando a eleição de 2019.

Essa declaração de guerra foi citada por rivais como prova de que a oposição ainda flerta com o golpismo de 2002, quando tentou –sem êxito– remover Hugo Chávez. Ramos Allup também apareceu num vídeo ordenando a funcionários do Parlamento que jogassem no lixo todos os retratos de Chávez e Simón Bolívar.

Embora seja compreensível a eliminação dos símbolos governistas, violentar a memória de Chávez é arriscado num país onde, segundo velha máxima, não existe eleitorado opositor, mas chavistas descontentes.

Questionado sobre os quadros de Bolívar, Ramos Allup disse que rejeitava as representações do herói nacional "amulatado", mas aceitava as "clássicas". A justificativa ecoa o racismo difuso que prefere enxergar o libertador como caucasiano, não como o homem de traços crioulos revisitado pelo chavismo com base na descrição de contemporâneos.

A confrontação eletriza partidários de Leopoldo López, opositor preso há dois anos sob acusação de incentivar protestos violentos. López quer ser o Mandela venezuelano, mas carece da verve conciliadora do herói sul-africano. Para os moderados da MUD, só o diálogo poderá aliviar a crise. Maduro, porém, não se ajuda.

Há duas semanas, quando lançou proposta para reerguer o país, teve chance de estender a mão à oposição pragmática. Mas, em vez de acenar com reformas, submeteu ao Parlamento um decreto de emergência econômica para radicalizar o dirigismo chavista.

O decreto acabou rejeitado, e o país deu mais um passo rumo ao abismo.


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