Folha de S. Paulo


Um mínimo de desobediência

RIO DE JANEIRO - A Prefeitura do Rio liberou os despachos de umbanda das exigências do Lixo Zero. Ótimo. Enquanto os papéis de bala, guimbas de cigarro, embalagens de batata frita, garrafas PET e outros detritos continuarão na mira das multas, os arranjos de galinha preta, farofa, cachaça e velas seguirão adornando as esquinas e adulando as entidades. Não acredito nessas coisas e em religião nenhuma, mas gosto de saber que algumas práticas resistem à pasteurização atual.

Antonio Maria, em crônica dos anos 50, observou a quantidade de despachos –quase um por esquina–no Leblon daquele tempo. Se hoje é improvável que alguém tropece em um só deles em todo o bairro, não esquecer que o Leblon de Maria ainda não tinha o metro quadrado mais caro do Brasil. Era um areal quase despovoado, cheio de terrenos baldios, mato crescendo nas calçadas e vida noturna zero –exceto entre os moradores da Praia do Pinto, a favela horizontal arrasada em 1969 e onde se construiu o condomínio Selva de Pedra.

Da mesma forma, seguem autorizadas as oferendas a Iemanjá no fim de ano –ninguém será multado por jogar flores no mar ou deixar uma garrafa de champanha para trás na areia. O mar habituou-se a engolir as flores e a Comlurb tem uma grande tradição de pôr a orla nos trinques ao amanhecer do dia 1º. Pelo mesmo motivo, ela tolerará o papel picado caindo dos prédios do Centro no último dia útil –nem teria como subir a cada escritório para multar os infratores.

Ninguém mais a favor de certas posturas municipais do que eu. As cidades precisam se tornar funcionais, e isso depende em boa parte de nós.

Mas, numa época em que nos tiraram o prazer de torcer em pé nas arquibancadas, assobiar para uma mulher bonita ou chutar tampinhas na rua, um mínimo de desobediência civil será saudável e essencial.


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