Folha de S. Paulo


O Brasil de Esiel Bananeiro e Maria das Coxinhas, onde motel vira prisão

Em um país no qual "Coxinha" virou adjetivo em contraposição a "Mortadela" –as duas faces da mesma moeda da polarização político-ideológica superdimensionada nas bolhas das nossas redes sociais– eu saboreei uma autêntica e deliciosa coxinha de frango em uma lanchonete na garagem de uma casa simples e acolhedora em Maracanaú (CE).

Era apenas uma das muitas paradas ao longo do périplo de dois meses de avaliação e reportagens do Prêmio Empreendedor Social deste ano, uma parceria da Folha e da Fundação Schwab, do qual sou editora há três ciclos.

O último encerrou-se na segunda-feira (6) com a premiação dos vencedores em três categorias.

Ao longo dos nove meses de gestação, os seis finalistas filtrados entre 160 inscritos conduziram a mim e a equipe pelo país dos empreendedores sociais.

E nele habitam brasileiros como Maria das Coxinhas, que formou um filho na melhor universidade do Estado vendendo o salgado que adotou como sobrenome com muito orgulho.

Neste Brasil da dona Maria, habitam outras figuras singulares como Esiel Bananeiro, o ex-presidiário Erivelton, os voluntários Socorro e Fuzzato e a intrépida dona Susana, vidas impactadas por projetos e negócios sociais.

Nas andanças de Norte a Sul, éramos recepcionados pela simpatia de gente como Esiel e Francisca, casal de produtores e vendedores de banana, em Aldeias Altas (MA).

Com seu sorriso franco e banguela, Esiel abre a casa, o pequeno comércio e o coração para narrar sua trajetória de sucesso como microempreendedor local.

Um caminho tortuoso marcado pela superação do alcoolismo e pela união da família para salvar a vida do filho mais novo, após um acidente de moto na noite de Réveillon de 2015.

Era preciso gravar uma fala de Esiel para o documentário e fazer a entrevista para o relatório a ser encaminhado ao júri para mostrar o impacto da atuação da Avante, finalista do prêmio.

A fintech fundada por Bernardo Bonjean leva microcrédito humanizado a uma população dessassistida ou mal-assistida pelos bancos tradicionais, em lugares remotos como a pequena cidade maranhense.

Para otimizar o tempo, ligamos as câmeras e registramos toda a conversa que se estendeu por 50 minutos para desespero dos colegas Renato Stockler e Danilo Quadros, que estavam captando as imagens, e Carol Gouvêa e André Azevedo, que depois iriam editá-las e montar o documentário.

BOM DE LÁBIA

Seu Esiel é bom de prosa, tem a lábia dos bons vendedores e solta frases surpreendentes, com uma profunda sabedoria da vida e um bom humor que parece imune aos dramas que permeiam a sua existência.

Ele mostra toda a sagacidade que faz dele um vencedor e um homem realizado. "Isso aqui não é sociedade, minha filha, é amor", responde ele, sobre o trabalho conjunto, de sol a sol com a mulher, ao longo de mais de 30 anos de vida em comum.

Emociona a todos com a declaração sincera sobre a união com a mãe de seus nove filhos. "Estas mãos aqui já quebraram muito coco", acaricia ele, juntando seus calos aos dela e trocando olhares cúmplices com Francisca.

No set improvisado na garagem onde Esiel estaciona seu avião –um carrinho de mão de ferro e madeira, com o qual oferece seus produtos pelas ruas da cidade–, Esiel abraça a companheira de vida, de forró e de luta e diz que ela o tirou da sarjeta, quando já pensava estar definitivamente derrotado pela cachaça.

Dez anos depois e livre da "mardita" pinga, eles demonstram que juntos são muitos mais que uma dupla, como escreve o poeta uruguaio Mario Benedetti. "Se te quero é porque tu és / Meu amor, meu cúmplice e tudo / E na rua lado a lado / Somos muito mais que dois".

Esiel Bananeiro fala de microcrédito, que afugenta "as onças" das contas a pagar e traz o alívio que lhe permite continuar plantando e produzindo, ganhando um bom dinheiro e investindo para produzir mais.

Em seu falar sertanejo, vai nos ensinando sobre cumplicidade, solidariedade, integridade e resiliência para superar dores, perdas, falta de dinheiro e de oportunidades.

GELADEIRA CHEIA

A sua recente prosperidade rima com simplicidade, inteireza de propósito e hospitalidade. Esiel e Francisca fazem questão de nos mostrar a geladeira cheia e nos convidam para almoçar. Convite infelizmente declinado por uma equipe que corre para contar outras tantas histórias.

Nos despedimos saboreando uma melancia doce, no ambiente que cheira a banana, produto-mor da casa. Dá tempo ainda de uma foto para registrar um daqueles encontros que nos moldam como pessoas e profissionais.

Seu Esiel ama, trabalha, sofre, batalha, ganha e perde dinheiro, sonha, dança e vai deixar de herança para a numerosa prole uma trajetória de luta e esperança.

Ele não reclama da crise, nem dos políticos, nem dos gastos médico-hospitalares que lhe dragaram todas as economias para salvar a vida do caçula.

Esiel resiste e insiste em ser feliz e em sonhar. Quer comprar um caminhão para expandir o negócio de banana, sair vendendo montado em cima da carroceria e dançando com sua companheira Maranhão adentro.

"Quando os meninos tomarem conta de tudo, eu só quero uma rede para deitar e namorar com ela", pisca os olhos marotos para a companheira e solta mais uma gargalhada. Francisca sorri de volta, com a bênção das bananas.

CHAVES DA PRISÃO

Sorrisos e lágrimas vão dando a emoção de um trabalho que nos mostra um Brasil resiliente, que sofre, mas parece imune aos malefícios da corrupção, da falta de rumos na política e na economia e de retrocessos em conquistas sociais.

Um país no qual é possível entrar com um juiz de execução penal sem escolta em um presídio sem armas nem guardas, no qual homens condenados por homicídios, sequestro e estupro guardam as próprias chaves das celas. E da cadeia. E não fogem.

É uma das 48 unidades prisionais administradas pela Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), experiência de presídios humanizados que fez Valdeci Ferreira, disseminador da metodologia no Brasil e no mundo, o Empreendedor Social de 2017.

Naquela prisão de São João Del Rei (MG), recém-inaugurada em julho, brotam flores em vasos que enfeitam celas e em jardins cuidados por "recuperandos", como são chamados os presos que cumprem suas penas neste modelo prisional alternativo.

Visitamos também a Apac de Timon, no Maranhão, Estado que recentemente mostrou ao Brasil a face sangrenta de uma crise do sistema carcerário nacional onde gente decapitada é contada às dezenas.

Em terras maranhenses, testemunhamos condenados sendo transferidos de um presídio com celas abarrotadas para um antigo motel transformado em prisão graças ao empenho de voluntários, do juiz, de promotores e defensores públicos e do governo estadual.

Gente que nada na contracorrente de que "bandido bom é bandido morto" e aposta na ressocialização daqueles que vão voltar ao convívio social se não forem condenados à morte dentro do sistema prisional. "E vão voltar piores", alerta Ferreira, que acredita ser possível mudar o fim desta história com a metodologia da presença.

Em São João Del Rei, o diretor da Apac é um ex-preso político, militante histórico da Pastoral Carcerária. Fuzzato ensina: "Não dá para falar de ressocialização de condenados quando eles nem sequer foram socializados". Ali eles engatinham no aprendizado de valores, no beabá que lhes foi negado na escola, aprendem a escovar dentes, a dialogar, a ter disciplina.

Ganham uma profissão antes de ganhar a rua. E de cada dez egressos das Apacs, oito, em média, não voltam a delinquir.

Um modelo ainda em escala pequena, mas que é um alento em meio ao noticiário de rebeliões e ao avanço do poder das facções dentro do sistema carcerário comum.

Em Timon, a prisão masculina é administrada por Socorro, voluntária que teve o irmão assassinado.

Ela chora ao falar de como parou de procurar culpados pela violência que feriu sua família e passou a fazer parte da solução e a olhar para cada condenado que recebe na Apac como um ser humano com possibilidade de recuperação. Exemplos ao seu redor não faltam.

Foram muitos os relatos ao longo de dois dias de visita, nos quais a equipe comeu juntos com os presos, comida caseira feita pelos próprios recuperandos. "Aqui a gente come com garfo e faca", destaca um deles. Parece um detalhe menor, mas é parte do processo de "virar gente" de novo, de ter um nome e não ser tratado por apelidos ou números, praxe dentro das penitenciárias em que o indivíduo deixa de existir ao passar a cumprir pena.

Foi naquele antigo motel convertido em unidade prisional que se casou Erivelton, tendo a diretora Socorro como uma espécie de cupido e madrinha.

Hoje, fora das grades, Erivelton chora como criança ao dizer que foi resgatado da lama, quando nem ele mais acreditava em si mesmo.

Emoções também latentes quando um grupo teatral composto de detentos faz uma encenação da parábola do filho pródigo e comove o juiz de execução penal, o promotor, defensores públicos e até jornalistas calejadas na lida, como a repórter Fernanda Mena e eu, sentadas ali na primeira fila para acompanhar a entrega de diplomas profissionalizantes.

BANQUETES

Na penúltima parada por oito Estados (Minas Gerais, Maranhão, Amazonas, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará e Paraíba) fomos recebidos por um lauto banquete na casa da ribeirinha Alcimara, no repartimento de Tuiué, em Manacapuru, no baixo Solimões.

Era dia de mais um mutirão no Amazonas promovido pela Renovatio, ONG que presta atendimento oftalmológico gratuito com distribuição de óculos para os moradores de região carentes.

Comemos peixes pescados por dona Susana, que com a vista cansada parou de costurar, mas não deixou de sair de barco sozinha rio acima para desespero dos filhos.

Ela colocou o vestido de festa e calçou sandália para ver o médico, figura rara por aquelas paragens. A oftalmologista Bruna era a primeira a dar as caras por ali e foi a última a comer da farofa e do peixinho fresco preparado pela família que atendera no começo daquela longa jornada.

Saímos às 5h da manhã do hotel em Manaus para duas horas e meia de viagem de van até o porto de Manacapuru e de lá descemos o rio de barco para mais quatro horas até chegar à comunidade.

Registramos o desembarque de uma trupe animada de voluntários que carrega nas costas um consultório móvel, com equipamentos e óculos que vão permitir crianças e adultos a ver melhor.

Para encerrar o tour pelo país dos empreendedores, a equipe saboreou um ratatouille preparado pela cozinheira Jannaína da Silva, que vendia água no sinal e agora comanda a cozinha do restaurante do Saladorama. O prato sofisticado era preparado enquanto a repórter Patricia Pamplona entrevistava Hamilton da Silva para seu perfil.

A receita francesa agora também é servida para os moradores da comunidade Nova Descoberta, cumprindo a proposta do negócio social de democratizar a alimentação saudável.

É o fim de uma longa e instrutiva travessia, que também nos permitiu ver e retratar com mais clareza tantos aspectos da complexa realidade do nosso país, além das perspectivas para o Brasil do século 21 em tecnologias como o aplicativo "Mudamos", lançado pelo ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) de Ronaldo Lemos, que foi perfilado pelo repórter Cristiano Cipriano Pombo.

Viagens por um Brasil profundo e pulsante, rico e desigual, cheio de problemas, mas prenhe de soluções.


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