Folha de S. Paulo


Os títulos e as suas armadilhas

O leitor atento sabe que os títulos jornalísticos não começam por artigo definido. Na edição de ontem da Folha, havia, por exemplo, este título: "STF recebe 28 pedidos...". Como se vê, nada de artigo antes de "STF" no título, mas, no corpo do texto, ele aparece logo na primeira citação do tribunal: "A (...) enviou ao STF...".

Essa supressão do artigo não ocorre desde sempre; salvo engano, ela é simultânea à mudança geral da linguagem jornalística, que incluiu a preferência pela ordem direta nas manchetes. O fato é que hoje em dia não se vê título jornalístico que comece com artigo definido, mas, no meio do título, a coisa muda.

Também é fato que essa supressão do artigo no início dos títulos cria muitas lambanças, decorrentes (suponho) da radicalização desse procedimento. Refiro-me particularmente a passagens que se leem no interior das manchetes. Vejamos este exemplo, publicado num site: "'À disposição', diz Vaccarezza a mulher de empreiteiro preso". O caro leitor já localizou o problema?

Há nesse título dois substantivos que não são precedidos de artigo. O primeiro é "mulher"; o segundo, "empreiteiro". Como neste momento há mais de um empreiteiro preso na PF, a ausência do artigo se explica justamente pela indeterminação desse empreiteiro. Não se diz quem é ele. Para que se perceba que, nesse caso, o procedimento do redator é mais do que cabível, basta que se reescreva o título com o artigo: "...diz Vaccarezza a mulher do empreiteiro preso". O que muda com "do" no lugar de "de"? Teríamos um empreiteiro que necessariamente já teria sido determinado numa passagem anterior do texto, o que, por motivos óbvios, não ocorre num título.

E o substantivo "mulher", que também não é precedido de artigo? Relembremos o trecho da manchete que nos interessa: "...diz Vaccarezza a mulher de empreiteiro preso". Calma, caro leitor! O "a" que antecede "mulher" não é artigo; é preposição ("dizer algo a alguém"). O sujeito de "diz" é "Vaccarezza", certo? E a quem ele diz o que diz? Ele diz o que diz à mulher do empreiteiro, portanto não há motivo para suprimir o artigo definido, ou seja, para indeterminar essa mulher, a menos que se queira insinuar que a distinta senhora é apenas uma das mulheres do tal empreiteiro.

Moral da história: lido ao pé da letra, o título contém uma insinuação, que, ao que parece, nem de longe passou pela cabeça do redator. O caro leitor já deduziu qual é a forma correta, mas não custa explicitá-la: "...diz Vaccarezza à mulher de empreiteiro preso". Fica fácil entender o porquê da obrigatoriedade do emprego do acento indicador de crase com a simples troca de "mulher" por "pai". O que teríamos? "A" ou "ao"? Teríamos "ao": "...diz Vaccarezza ao pai de empreiteiro preso". Não custa relembrar que "à" = "a" + "a" e que "ao" = "a" + "o".

Essa obsessão pela eliminação do artigo nos títulos talvez tenha sido a causa desta bizarrice, do mesmo site: "Nevasca em Alpes paralisa estradas e lota abrigos". Em Alpes? Como assim? "Alpes", que nomeia uma extensa cadeia de montanhas, sempre se usa com artigo (a menos que essa palavra inicie a manchete). Vamos lá: "Nevasca nos Alpes paralisa estradas...". Justiça seja feita: depois de passar boa parte do dia na capa do site, a extravagância foi corrigida, o que, por sinal, nem sempre acontece. É isso.

inculta@uol.com.br


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