Folha de S. Paulo


Montagem de '1984' ilumina a sociedade contemporânea

Sara Krulwich/The New York Times
Cena de
Cena de "1984", na Broadway

No último dia 22, estreou na Broadway a adaptação teatral de "1984", o famoso romance distópico de George Orwell. Trata-se, na verdade, de uma remontagem da adaptação originalmente encenada em Londres, em 2014, quando a Inglaterra ainda vivia sob o impacto das denúncias de Edward Snowden e o interesse do público residia em buscar paralelos entre a onipresença do Big Brother e os programas de vigilância em massa da NSA, alguns dos quais em colaboração com a agência de espionagem britânica GCHQ.

É outro o contexto da peça em sua estreia em Nova York, duas semanas atrás. A remontagem americana de 2017 acontece num momento no qual se discutem as "notícias falsas" e a "pós-verdade", num Estados Unidos governado por Donald Trump.

A grande novidade da adaptação teatral de Robert Icke e Duncan Macmillan consiste em partir do apêndice sobre "Os princípios da Novilíngua [Newspeak]", um tratado acadêmico anexado ao final do romance de Orwell que descreve e analisa a língua oficial que o governo da Oceania tentava impor à população e que tinha por objetivo impedir o pensamento dissidente.

A leitura desse apêndice em geral é dispensada pelo leitor por ser uma espécie de detalhamento de um aspecto "técnico" da obra. No entanto, a leitura atenta do tratado sobre a "Newspeak" dá novo sentido ao conjunto. Como é uma descrição acadêmica sobre um evento passado e é escrito em inglês comum, o texto sugere um mundo pós-revolucionário onde o governo do IngSoc foi deposto e um estudioso pode olhar para aqueles eventos com um interesse erudito sobre acontecimentos passados.

Esse sentido esperançoso de um futuro no qual o governo opressivo foi derrubado contrapõe-se ao final melancólico da parte principal do romance no qual o protagonista Winston Smith trai seu amor subversivo por Julia e, por meio da submissão egoísta ao medo da tortura, declara finalmente seu amor ao Big Brother.

Partindo dessa interessante revalorização do apêndice, a adaptação teatral intercala dois planos narrativos: um, com a conhecida trama do desvio, rebelião, aprisionamento e reeducação de Winston Smith e, outro, na temporalidade do apêndice, com uma espécie de grupo de estudos no final do século 21 que discute o romance "1984", como quem trata de eventos passados.

O artifício de colocar em cena estudiosos, em um futuro pós-distópico, é uma arriscada manobra dramática que parece ter por objetivo transmitir a mensagem de que tudo aquilo que é descrito no romance como passado remoto talvez ainda esteja vivo no mundo dos estudiosos. Assim, por analogia, o espectador da peça poderia se perguntar se esses acontecimentos que, para Orwell, aludiam às sociedades totalitárias do século 20, não poderiam também estar vivos num mundo com a NSA e, agora, com Donald Trump.

Para realçar o alerta, a adaptação faz o grupo de estudos duvidar do narrador de "1984". Assim como o Big Brother manipulava os fatos históricos, os estudiosos do final do século 21 suspeitam que também o narrador do romance pode ter manipulado os fatos, fazendo parecer no apêndice que o totalitarismo tinha sido derrotado, quando ele seguiria vivo, sorrateiro, nos tempos correntes do plano cênico.

Essa opção é perigosa porque, ao duvidar do narrador, a adaptação desfaz o pressuposto que sustenta a crítica de Orwell. Trata-se, afinal, de uma dura denúncia da manipulação totalitária da realidade histórica objetiva —é preciso lembrar que Orwell escreve num momento em que as grosseiras falsificações históricas do stalinismo eram prática corrente.

Ao dissolver a fronteira entre fato e interpretação, transformando o narrador do romance e o Big Brother em manipuladores equivalentes, em simples produtores de narrativas, todo o substrato crítico da obra se desfaz, o que os autores da adaptação parecem não notar.

Mas, paradoxalmente e contrário à intenção da adaptação, ela diz muito sobre a realidade social contemporânea.

Quando o narrador e o Big Brother, os Estados totalitários e a crítica antistalinista se equiparam, tudo se resume então a um conflito de narrativas pós-moderno. Isso diz pouquíssimo sobre a denúncia do totalitarismo no pós-Segunda Guerra, mas diz muito sobre a dinâmica de produção de informação na sociedade contemporânea, essa sociedade afogada em boatos e notícias falsas que se difundem sem controle nas mídias sociais —e não apenas nos círculos de direita.

Sem querer, a adaptação da obra contribui para a compreensão do momento político atual no qual –na Inglaterra, nos Estados Unidos ou no Brasil– a banalização do discurso antifascista pode ser apenas mais um truque a serviço do rebaixado jogo político da polarização.


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