Folha de S. Paulo


Reino Unido caminha rumo a um 'brexit' caótico

Justin Tallis/AFP
Britain's Prime Minister and leader of the Conservative Party Theresa May delivers a statement outside 10 Downing Street in central London on June 9, 2017 as results from a snap general election show the Conservatives have lost their majority. British Prime Minister Theresa May faced pressure to resign on June 9 after losing her parliamentary majority, plunging the country into uncertainty as Brexit talks loom. / AFP PHOTO / Justin TALLIS
Theresa May discursa após a eleição que tirou a maioria de seu partido no Parlamento

Theresa May prometeu força e estabilidade. Produziu o resultado oposto. Seria engraçado se a situação não fosse tão séria. Donald Trump está obcecado pela ideia de que o mundo ri dos Estados Unidos. No caso do Reino Unido, essa descrição deve ser verdade: David Cameron lançou um referendo desnecessário sobre manter ou não o país na União Europeia; May, sua sucessora, seguiu o mesmo caminho ao convocar uma eleição que destruiu sua posição política. O país parece ridículo.

A eleição geral também tornou mais provável que a saída britânica da União Europeia (o "brexit") aconteça "sem acordo". Ao contrário do que imaginam aqueles que acreditam que "melhor acordo nenhum que um mau acordo", sair sem acordo seria uma calamidade, para os dois lados.

A ironia da eleição é que a parcela dos votos obtida pelo Partido Conservador, 42,4%, é a maior que o partido conquistou desde 1983. E ela também foi mais alta que a média mensal das pesquisas eleitorais durante quase toda a duração do último parlamento. O inesperado foi a capacidade demonstrada pelos trabalhistas de roubar assentos aos partidos menores, cuja parcela dos votos caiu à sua menor marca desde 1970. O líder trabalhista, Jeremy Corbyn, um rebelde perpétuo, provou ser o flautista mágico ideal para o voto de protesto.

A primeira-ministra perdeu sua maioria e sua autoridade. Como apontou George Osborne, o antigo secretário das Finanças britânicas, ela está "a caminho do cadafalso". May agora depende dos ranzinzas do Partido Democrático Unionista, da Irlanda do Norte, para ter maioria na Câmara dos Comuns. Ela já desperdiçou um oitavo do prazo deflagrado quando invocou o Artigo 50 do Tratado de União Europeia. E descobrirá que é completamente impossível chegar a acordo sobre, e aprovar legislativamente, os compromissos necessários com a União Europeia dentro desse prazo, se é que será mesmo possível aprová-los.

O principal desses compromissos envolverá o pagamento de grandes montantes em contribuições britânicas para a União Europeia, e cláusulas que protejam os direitos de residência dos cidadãos da União Europeia radicados no Reino Unido. No entanto, além da demora adicional que causaria, uma nova eleição pode não resolver a situação. O resultado pode ser mais um parlamento sem maioria clara. O Reino Unido vive uma espetacular confusão.

A obsessão de uma parte da direita quanto à participação na União Europeia, combinada à irresponsabilidade de Cameron, possivelmente o pior primeiro-ministro da história britânica, vem arrastando o país de crise a crise. A probabilidade de que a saída aconteça sem acordo agora se tornou mais alta do que antes da eleição, porque um acordo dependeria de aceitar os termos de divórcio propostos pela União Europeia. Não existe motivo para imaginar que o comércio de bens e serviços e o tráfego aéreo continuem fluindo, quanto menos fluindo sem dificuldade, em caso de uma saída assim desordenada.

Organizar o comércio pós-"brexit" requererá cooperação e preparação. No caso de uma saída "sem acordo", o Reino Unido não poderia esperar qualquer das duas coisas da União Europeia, que encararia o país como um Estado renegado –um país que repudiou suas obrigações. Afinal, é isso que significa "sem acordo".

Reduzir o país a esse tipo de relacionamento com seus eternos vizinhos e principais parceiros comerciais seria insano. Mas foi esse o risco criado pelo referendo –e ele continua a existir. Entre os muitos defeitos estava o fato de que as alternativas não foram especificadas devidamente. Não existe uma escolha binária entre sair e ficar. O que havia era uma escolha entre ficar e diversas formas de sair. A depender de que acordo fosse obtido com a União Europeia, essas últimas poderiam variar da mais branda –participação permanente no mercado unificado e união alfandegária– à mais árdua –um fracasso em chegar a acordo depois do "brexit".

E isso sem esquecer a alternativa caótica: a de que um acordo nem mesmo fosse negociado. Se considerarmos o quanto estamos próximos dessa última opção, o voto pela permanência quase certamente teria derrotado qualquer forma específica de "brexit", em uma disputa direta. E a realidade é que o Reino Unido só poderá ter uma versão específica do "brexit". Por isso é democraticamente legítimo exigir outro referendo entre ficar na União Europeia e a versão negociada do "brexit" (se houver alguma). Infelizmente, pode ser difícil para o Reino Unido retirar sua solicitação de desligamento.

Esse processo insensato agora colocou o Reino Unido no caminho de uma saída caótica. O Reino Unido sempre quis dividir a Europa. Agora, a está unindo contra ele. Trata-se de um desastre estratégico. Além disso, com o país isolado, sua influência é limitada. Os britânicos já se veem inibidos em seu relacionamento com os Estados Unidos de Trump, por medo de represálias. Nos acordos de comércio que importarão, com os Estados Unidos, China, Índia e a União Europeia, o Reino Unido ocupará a posição de um suplicante fraco. Terá de aceitar aquilo que seus parceiros mais fortes exigirem.

O primeiro-ministro Harold Macmillan seguiu sua aceitação de que o império britânico havia acabado com uma solicitação de adesão à Comunidade Econômica Europeia, em 1961, por bons motivos políticos e econômicos. Ele compreendeu que o interesse estratégico do Reino Unido passara a ser a integração com uma Europa forte. A melhor escolha para o Reino Unido continua a ser ficar na União Europeia. Todas as alternativas são muito piores.

Há quem espere, agora, que o país possa se manter no mercado unificado e na união alfandegária, e assim desfrutar ao menos dos benefícios econômicos da participação. Mas isso significaria aceitar tanto o livre movimento de pessoas quanto regulamentações sobre as quais os britânicos não teriam influência alguma. O resultado seria sofrer tudo que é percebido como desvantagem da participação na União Europeia sem obter quaisquer dos benefícios. A situação seria intolerável politicamente. Por isso, o Reino Unido agora precisa correr em busca de opções politicamente mais toleráveis, mas economicamente muito piores, do que a participação plena na União.

A opção menos pior provavelmente seria aceitar todos os termos de divórcio da União Europeia e mais um longo período de transição ainda como membro do mercado unificado e da união alfandegária, depois de 2019, seguido por um acordo abrangente de livre comércio o mais cedo possível. Isso seria pior do que continuar na União, mas ainda assim relativamente administrável. Infelizmente, chegar a um acordo como esse e implementá-lo no limitado prazo disponível requer um governo forte, estável e sensato. Não é isso que o Reino Unido tem, e nem parece provável que venha a tê-lo.

Insensatez ociosa aprisionou o país entre a cruz da União Europeia e a espada de um "brexit" ultracontencioso. Não sair continua a ser melhor que as alternativas. A forma de exclusão que o país sofreria caso a saída ocorra sem acordo seria pior do que qualquer acordo imaginável. Mas o que nos aguarda é ou um mau acordo ou acordo nenhum. E a culpa disso é em larga medida dos conservadores. Os eleitores se enraivecerão quando perceberem o fato. E o acerto de contas será terrível.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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