Folha de S. Paulo


O conturbado futuro da política de comércio mundial

Os acordos multilaterais de comércio que os Estados Unidos estão propondo devem ser recebidos positivamente? É uma pergunta séria, não menos para aqueles que consideram a liberalização do comércio mundial como importante realização. Mas ela também é altamente controversa.

Desde o fracasso da Rodada Doha de negociações multilaterais - lançada pouco depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2011 -, o foco da política de comércio mundial mudou para acordos multilaterais, limitados a um grupo restrito de participantes. Os mais significativos são propostas norte-americanas: a Parceria Trans-Pacífico (TPP) e a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). Nas palavras de um estudo do Conselho de Assessores Econômicos dos Estados Unidos, a agenda comercial do presidente Obama tem por objetivo colocar os Estados Unidos "no centro de uma zona de comércio integrado abarcando quase dois terços da economia mundial e quase 65% do comércio norte-americano de bens".

A TPP é uma negociação envolvendo 11 países, o mais importante dos quais é o Japão. Eles respondem por cerca de 36% da produção mundial, 11% da população e cerca de um terço do comércio de mercadorias. A TTIP envolve os Estados Unidos e a União Europeia, que respondem por 46% da produção e 28% do comércio de mercadorias mundial. O principal parceiro excluído das duas negociações é, evidentemente, a China.

Alguns dos países participantes da TPP ainda têm barreiras fortes à importação de produtos. O Conselho de Assessores Econômicos aponta para tarifas relativamente altas na Malásia e Vietnã e proteção à agricultura no Japão.Também afirma que os parceiros norte-americanos na TPP e a União Europeia têm barreiras mais fortes que os Estados Unidos à importação de serviços.

Mas reduzir as barreiras é apenas parte do objetivo norte-americano. O conselho também acrescenta que, com a TPP, Washington quer promover "proteções aos trabalhadores e políticas ambientais compulsórias", e também "defesa mais forte dos direitos de propriedade intelectual". Na TTIP, "os dois lados buscam acordo sobre coerência e transparência regulatória multidisciplinar" - em outras palavras, querem tornar as regras mais compatíveis umas com as outras e mais transparentes para as empresas. Assim, tanto a TPP quanto a TTIP são esforços para dar forma às regras do comércio internacional. Pascal Lamy, antigo diretor da Organização Mundial do Comércio (OMC), argumenta que "a TPP trata principalmente, ainda que não só, de questões clássicas de protecionismo e acesso a mercados... e a TTIP trata principalmente, ainda que não só, de convergência regulatória".

Determinar se essas negociações encontrarão sucesso dependerá de o governo Obama obter do Congresso autorização para negociar em via expressa. Mas será que deveríamos desejar seu sucesso?

Os pontos positivos claros são: acordos multilaterais são hoje a melhor maneira de liberalizar o comércio mundial, dado o fracasso das negociações multilaterais. As novas regras e procedimentos adotados para eles são o melhor modelo para o futuro; e os novos acordos propiciarão ganhos significativos.

São argumentos fortes. Mas os argumentos opostos também valem.

Com capital político limitado, o foco em arranjos multilaterais de comércio acarreta o risco de esvaziar a OMC. Isso pode tornar menos potentes as normas mundiais de comércio. Jagdish Bhagwati, da Universidade Colúmbia, enfatiza esses riscos. Além disso, os arranjos preferenciais de comércio acarretam o risco de distorcer complexas cadeias mundiais de produção.

Outra preocupação é que os Estados Unidos usem sua influência para impor regulamentos que não interessam a seus parceiros. Os padrões ambientais e trabalhistas me preocupariam menos, ainda que os dois possam ser inapropriados, do que a proteção da propriedade intelectual. Não é verdade que padrões mais rigorosos serviriam aos interesses de todos. Pelo contrário: se padrões norte-americano forem impostos, os custos seriam muito altos.

Por fim, os ganhos econômicos dificilmente serão grandes. O comércio internacional já foi substancialmente liberalizado, e a dimensão dos ganhos se reduz à medida que as barreiras caem. Um estudo do Instituto Peterson de Economia Internacional, de Washington, sobre a TPP sugere que a alta na renda real norte-americana propiciado por um acordo seria de menos de 0,4%. Um estudo do Centro de Pesquisa de Política Econômica, de Londres, sobre a TTIP oferece números apenas ligeiramente mais altos para os Estados Unidos e a União Europeia. Concluir a TTP e a TTIP elevaria o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos em talvez 1%. Não é nada, mas tampouco é grande coisa.

O acordo entre Estados Unidos e União Europeia não desperta preocupações sobre a capacidade dos Estados Unidos para intimidar seus parceiros. No comércio, os dois lados se equivalem. Mas há três outras preocupações com a TTIP.

Primeiro, Jerome Capaldo, da Universidade Tufts, argumenta que as estimativas de ganhos ignoram os custos macroeconômicos. Sua abordagem keynesiana é de que a União Europeia perderá demanda por conta da queda de seu superávit comercial. Isso é ridículo. Problemas macroeconômicos devem ser tratados por meio de políticas macroeconômicas. A política comercial tem objetivos diferentes.

Segundo, algumas das barreiras que o acordo está tentando remover refletem atitudes diferentes quanto o risco. As negociações precisarão desenvolver um teste que permita coordenação de procedimentos regulatórios - para testes de medicamentos, por exemplo -, mas sem impor preferências idênticas. Se os europeus não querem organismos geneticamente modificados, devem ser autorizados a preservar essa preferência. Se a política comercial tentar invadir esse território sagrado, ela morrerá.

Por fim, temos a incômoda questão da resolução de disputas entre investidores e estados. Muita gente se queixa de que opções políticas - por exemplo sistemas de saúde bancados por dinheiro público, ou o direito de impor controles sobre os preços dos remédios - estariam em risco sob sistemas orientados em favor das empresas. Os negociadores negam fervorosamente o ponto. É preciso garantir que estejam certos.

No geral, os benefícios da TPP e da TTIP provavelmente serão positivos, mas modestos. Mas há riscos. As duas parcerias não devem se tornar alternativa à OMC ou tentativa de marginalizar a China no processo decisório da política comercial. Elas não devem ser usadas para impor regulamentação prejudicial ou subverter regulamentos legítimos. É preciso caminhar com cuidado. Qualquer exagero poderia se provar contraproducente, até para a causa da liberalização do comércio mundial.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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