Folha de S. Paulo


Mark Carney e sua aposta arriscada em um grande setor financeiro

Na semana passada, Mark Carney, presidente do Banco da Inglaterra, causou alegria à City de Londres. Sua robusta defesa do setor financeiro e sua declaração de que "nossas portas estão abertas" marcam uma abrupta mudança quanto ao regime de lorde King, o seu predecessor. O setor financeiro certamente o amará. As opiniões dele são animadoramente claras. Mas também representam uma aposta.

Em discurso celebrando o 125º aniversário do "Financial Times", o argumento central de Carney era o de que "organizado da forma devida, um setor financeiro vibrante traz benefícios substanciais". Carney apontou para a escala dos mercados de Londres, com quase quatro vezes mais bancos estrangeiros do que em 1913. Os ativos dos bancos do Reino Unido cresceram de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) para mais de 400%, no período.

E ele acrescentou: "Suponham que a participação dos bancos de propriedade britânica na atividade mundial continue a mesma, e que a presença do setor financeiro em economias estrangeiras se aprofunde de acordo com as normas históricas. Em 2050, os ativos dos bancos britânicos seriam nove vezes maiores que o PIB, e isso não abarca o crescimento potencialmente rápido dos bancos estrangeiros e das atividades financeiras paralelas sediados em Londres". Ele prosseguiu: "Haverá quem reaja com horror a essa perspectiva". E estava certo, porque isso faria do Reino Unido a Islândia em 2007. Carney rebateu afirmando que "um setor financeiro vibrante traz substanciais benefícios". Isso é fato, ele afirmou, não só para o Reino Unido como para o mundo. "O setor financeiro britânico pode ser um ativo tanto mundial quanto nacional - ele é resistente".

Carney delineou as medidas tomadas, e as planejadas para breve, a fim de aumentar a resistência dos bancos. Elas incluem regras de capitalização e liquidez, e acima de tudo procedimentos de "solução" de bancos internacionais insolventes sem a necessidade de socorro por parte dos contribuintes. Ele afirmou que "o Estado britânico não pode amparar um sistema bancário que já é muitas vezes maior que a economia do país"., Além disso, discutiu novas regras para os mercados, enfatizando a forma como mudanças nos valores de caução geram instabilidade. Mas ele insistiu em que essas fraquezas, que levaram ao congelamento do mercado em 2008, estão sendo sanadas...

Sarney enfatizou o papel de apoio do Banco da Inglaterra, e argumentou que "nosso trabalho é garantir que o setor financeiro esteja seguro". Enfatizou a abordagem que o banco central adotará em breve quanto a fornecer dinheiro e caução de alta qualidade aos bancos. "A gama de ativos que aceitaremos em troca será mais ampla, se estendendo a empréstimos brutos e, de fato, a qualquer ativo do qual sejamos capazes de avaliar os riscos. E usar nossas linhas de crédito ficará mais barato. Em certos casos, as taxas estão sendo reduzidas a menos da metade".

Temos um novo Banco da Inglaterra, então. Mas será que temos um banco central sensato? Para começar, as novas regras de liquidez podem ser consideradas como sábias? Um banco central pode, em princípio, criar dinheiro sem limites, em seu mercado nacional. Mas se usar esse poder com liberdade demais encorajará os bancos e mercados a gerar mais transformações de vencimentos, e isso os tornará, bem como a economia, mais vulneráveis a pânicos. O comentarista vitoriano Walter Bagehot acreditava que bancos centrais emprestando a juros punitivos limitariam o perigo. Quanto menos dolorosa a punição, mais importantes se tornam os novos regulamentos de administração de liquidez. Eles funcionarão? Não sabemos ainda.

Segundo, as novas regras para bancos e mercados os tornarão suficientemente resistentes? É preciso ceticismo na resposta. A ideia de que o Reino Unido possa se tornar uma nova Islândia torna as medidas de proteção dos bancos de varejo propostas pela Comissão Bancária Independente ainda mais importantes. Para além disso, é perturbador que a ponderação de risco de capital continue em uso. Um nível de alavancagem de mais de 30 para um é excessivo. Os bancos precisam de muito mais capital.

A resposta de Carney a isso é que a capacidade de "solucionar" bancos, convertendo títulos de dívida em capital acionário, resolve o problema. Esse método de solução também tiraria os contribuintes da berlinda. Mas não tiraria a economia da berlinda. Quando dívida se converte em capital, em uma crise, a capacidade de expansão de crédito de um banco será restringida. Isso é o que importa.

O futuro que Carney delineia será bom para o Reino Unido? Quanto a isso, ele está certo: o setor financeiro se tornou fonte crucial de emprego e renda. Mas é um setor que também gera instabilidade e crescente desigualdade de renda. O Reino Unido precisa no mínimo compreender as implicações do que aconteceria caso se transforme em uma grande Hong Kong.

Mas a maior questão é se o aprofundamento financeiro e integração internacional cada vez maiores são realmente positivos. Os indícios apontam para o contrário. Em recente estudo, dois economistas do Banco de Compensações Internacionais (BIS) argumentaram que "existe um relacionamento negativo entre o ritmo de crescimento do setor financeiro e o ritmo de crescimento do fator total de produtividade". Parte da razão para isso é que as finanças beneficiam desproporcionalmente os "projetos de alta caução/baixa produtividade".

Em agosto de 2013, os empréstimos ativos de bancos a entidades do Reino Unido montavam a 2,4 trilhões de libras (160% do PIB). Deles, 34% eram a instituições financeiras, 42,7% a domicílios, com garantia hipotecária, e outros 10,1% para o setor imobiliário e de construção. A indústria detinha 1,4% do total. O setor bancário britânico é uma máquina fortemente interconectada cuja principal atividade é elevar o endividamento que pende sobre ativos imobiliários existentes.

Por que essa expansão promoveria crescimento, a não ser o do próprio setor financeiro? Ela pode em lugar disso exacerbar ainda mais a fragilidade que a carga de dívidas causa na economia britânica.

O aprofundamento do setor financeiro pode promover prosperidade, mas só até certo ponto. Muitos países de alta renda já passaram desse ponto. A imensa expansão do setor financeiro de 1980 para cá não trouxe ganhos econômicos comensuráveis. Muitos países em desenvolvimento não têm espaço para crescimento do setor financeiro, o que os beneficia. A Índia serve como exemplo. Mas alguns deles já podem ter permitido crescimento suficiente.

Também está longe de claro que os argumentos em favor de uma integração financeira transnacional mais ampla sejam os mesmos que valem para o comércio de bens. A integração financeira carrega com ele riscos de crises, como os países emergentes descobriram. O custo da proteção contra essas crises é pesado para eles. O desejo de proteger a estabilidade financeira interna, ao insistir em que bancos estrangeiros criem subsidiárias nacionais, e não apenas agências, é sábio.

O presidente do banco central britânico definiu uma nova visão. Admiro sua audácia. Mas tenho dúvidas quanto à sua sabedoria. A ideia de uma grande expansão, mesmo de um sistema financeiro reformado, possa produzir grandes benefícios mundiais é duvidosa. Não exagere no zelo, Sr. Carney.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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