O desempenho econômico da Argentina desde o fim da conversibilidade é robusto. A renegociação da dívida externa teve ampla aceitação dos credores. O crescimento real médio de 2003 a 2011 foi de 6%. O dado não é oficial, mas de Eduardo Levy Yayeti, um crítico dos números do governo.
Entretanto, nos últimos anos, as notícias que chegam da Argentina fazem parecer que há uma grave crise econômica e institucional. A observação de sua história, marcada por intensa rivalidade, ajuda a entender esse paradoxo. Para isso, recorri a textos do economista portenho-carioca Matias Vernengo, em especial do blog (http://nakedkeynesianism.blogspot.com.ar).
Em comparação ao Brasil, tudo na história argentina é mais radical: o esplendor das exportações agropecuárias no fim do século 19 e no início do 20; a disputa ideológica durante a industrialização no pós-guerra, a ditadura militar, a reversão liberal, que chegou nos anos 1990 à alienação da moeda local, e a rivalidade política atual.
Chama a atenção o declínio econômico a partir de 1929. A renda per capita chegou a cair de 80% da renda dos EUA para um terço desta.
Na Bela Época, quase tudo era importado e a prosperidade vinha de uma inserção externa subordinada, fornecendo agropecuários num mundo em que a potência hegemônica, a Inglaterra, era grande consumidora deles.
A crise de 1929 fez o modelo colapsar e ensejou a industrialização por substituição de importações dos anos 1940 aos 1970. Como no Brasil, esse processo foi voltado ao mercado interno, liderado pelo Estado, contou com o capital estrangeiro, além do privado nacional, e sofreu com restrições de divisas externas.
De singular, havia a idealização de uma época dourada. Nenhum país populoso foi tão bem-sucedido no modelo agroexportador. Isso deu e ainda dá enorme força aos setores agrários, que entendem a industrialização como inviável.
No pós-guerra, a industrialização e as políticas redistributivas de Perón fortaleceram a burguesia industrial e os sindicatos, criando o "empate hegemônico" (1946/76), em que se intercalaram períodos de ruptura e restauração democrática.
A maior rivalidade política reduziu o dinamismo do projeto desenvolvimentista em relação ao Brasil. Ainda assim, o desempenho econômico foi bem satisfatório. De 1964 a 1974, o dinamismo é tão forte quanto na Bela Época.
Em 1976, instalou-se ditadura mais sanguinária que a brasileira. Na economia, os militares, ao contrário do Brasil, iniciaram a liberalização econômica, só estancada com o colapso da conversibilidade, no início do século 21 (há um breve interregno com Raúl Alfonsín nos anos 1980).
A situação atual é mais um capítulo dessa animosidade.
É verdade que a economia se deteriorou em 2012 e o governo perde apoio. Mas vale ressaltar que nem sequer houve ruptura com a reprimarização pós-76 --ainda que a política macro seja tentativa disso, com câmbio depreciado e elevado ganho salarial, explicando em parte a inflação mais alta (mas longe de ser problemática, como nos 1980). Talvez problema maior seja a (boa) tentativa de elevar a tributação sobre o rentável setor agrícola.
Na política, parece haver costumeiros exageros por parte da oposição e do governo. Mas desde 1983 os presidentes são eleitos livremente sob as regras constitucionais.
A lei de meios tem problemas, mas não parece cercear a liberdade de imprensa, e sim regular a concentração de propriedade no setor, algo que existe em países como os EUA. A Justiça toma decisões contra o governo, como estender o exíguo prazo para que os grupos de mídia se desfaçam de negócios.
Mais de 150 criminosos da ditadura foram condenados. Outras cem pessoas, filhos de presas políticas e adotados à força por militares, encontraram suas famílias. Tal processo é conflituoso e doloroso, mas nisso os Kirchner merecem aplausos.
Não tenho simpatia pelo peronismo --que junta no mesmo partido grupos ideológicos díspares, gerando disputa política confusa e populista-- nem por manipulações de estatísticas oficiais ou pela arbitrariedade de medidas comerciais contra o Brasil. A briga política continua belicosa e estranha. Mas nada indica que ocorra fora da (tensa) normalidade (argentina) democrática.