Folha de S. Paulo


O triunfo do monstro

"Nascimento é o herói que todos os brasileiros gostariam que existisse." A declaração do cineasta Bruno Barreto, nesta Folha da última quinta-feira, é uma das chaves para entender o sucesso de público de "Tropa de Elite 2", que na semana passada se transformou no filme nacional mais visto da história.

Ao chegar à marca de 10,736 milhões de espectadores, "Tropa 2" superou "Dona Flor e seus Dois Maridos", do próprio Barreto, quebrando um recorde de 34 anos que muitos profissionais do cinema consideravam insuperável, pois de uma época em que a TV não tinha mais que um punhado de canais e o videocassete era uma lenda urbana.

O feito do longa-metragem dirigido por José Padilha se ancora, em boa parte, na empatia que o personagem brilhantemente interpretado por Wagner Moura desperta na maioria da plateia.

É um sentimento cunhado já no primeiro filme: capitão Nascimento virou ídolo ao defender a tortura como arma e a execução de criminosos sem julgamento. O êxtase popular gerado por tais características repulsivas surpreendeu até o criador do monstro.

Em artigo na revista acadêmica "Dicta & Contradicta" deste mês, o roteirista Bráulio Mantovani conta ter ficado "assustado pela maneira como grande parte do público encarou Nascimento como herói do "bem'" e relembra que "Tropa 1" problematizava nas imagens o discurso da violência praticado pelo policial.

"As mãos do personagem tremem, o corpo fica paralisado [...]. O personagem fracassa tremendamente na vida pessoal", escreve Mantovani.

Em "Tropa 2", o agora coronel passa por uma profunda crise moral e revê seu código ético. Mas arranca mais aplausos nos cinemas quando espanca um político corrupto -por mais que se humanize, Nascimento amplia seu fã-clube ao retornar à selvageria, usada aqui contra um grupo social desacreditado.

O apreço por esses policiais justiceiros vem de longe. Nos anos 70 e 80, por exemplo, Clint Eastwood viveu Harry, o Sujo, tira violento que ignorava a lei para massacrar bandidos nas ruas de San Francisco.

O sucesso de público foi tanto que "Perseguidor Implacável", de 1971, rendeu quatro continuações.

Nascimento descende da linhagem de Harry, só que bem azeitado ao cotidiano nacional. A farda e a caveira do Bope não só respaldam seus atos brutais como realçam o realismo do personagem -Nascimento soa sempre verossímil, de carne e osso.

Tal realismo potencializa essa empatia, ajuda a alimentar esse amor pelo monstro, que é tão revelador dos tempos em que vivemos.

LEONARDO CRUZ é secretário-assistente de Redação.


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