Folha de S. Paulo


Adeus, Woody?

Que tragédia. O dia que eu mais temia aconteceu. Assisto em Nova York a "Blue Jasmine", a última colheita de Woody Allen. Dizer que estamos na presença de um desastre de proporções históricas é dizer pouco. Que se passa com Woody, afinal?

Ele próprio respondeu. Em entrevista recente, sei lá onde, o diretor confessou o seu método de trabalho. Corrijo. A sua necessidade de trabalho. Dizia Woody que fazer um filme por ano era terapêutico para ele. Exatamente como acontece com os doentes psiquiátricos internados em asilos que dedicam as horas livres a trabalhos manuais - pintura, cerâmica, bricolage etc.

Boa comparação. Revejo-me nela. A ideia de que o trabalho liberta ganhou má fama por causa dos crimes nazistas no século 20.

Mas o trabalho liberta. Mesmo. Psiquiatras, psicólogos e tarados diversos dirão que o trabalho só liberta "workaholics", incapazes de vidas autênticas no mundo "real".

Discordo. O trabalho também pode ser "autêntico". E, além disso, há no trabalho bem feito um prazer --e um sentido existencial-- que só podemos encontrar no amor. Na amizade. Dizem que na parentalidade. Mas divago.

Ou não divago. Porque existe uma diferença entre fazer potes de cerâmica no asilo e um filme por ano para as salas. As telas não são para consumo público. Servem para enganar a náusea da enfermidade. Um filme por ano, sobretudo para quem nos deu tanto no passado, joga em outro campeonato.

"Blue Jasmine" é a expressão do esgotamento criativo de Woody Allen. Havia sinais. "Para Roma com Amor" mastigava-se com prazer moderado. Depois de "Meia-Noite em Paris" (uma obra-prima), perdoava-se a indulgência de Woody em reciclar velhas piadas para montar um postal turístico em Roma. E o "gag" do cantor lírico que só funciona no chuveiro praticamente justificava o filme.

Merrick Morton/Efe
Cena do filme
Cena do filme "Blue Jasmine", de Woody Allen

Nada disso existe em "Blue Jasmine". Resumo: Jasmine, uma "socialite" do Upper East End (Cate Blanchett, a caminho do Oscar) perde tudo quando o marido (Alec Baldwin, versão Bernard Madoff) é preso por fraude.

É o fim de um mundo e o início de outro. Condenada a viver com a irmã proletária em São Francisco, o filme decalca a estrutura de "Um Bonde Chamado Desejo" de Tennessee Williams. E nem sequer faltam dois Stanley Kowalskis para sublinhar as diferenças de classe (no duplo sentido da palavra) entre as irmãs.

Previsivelmente, Jasmine não consegue funcionar na nova realidade. O que a joga de volta para a irrealidade da vida passada --um "dead end" onde só existe solidão e loucura e mais nada.

O problema não está na homenagem à peça de Tennessee Williams. Não existe cultura sem plágio --ou, pelo menos, sem um diálogo constante com os mestres que ficaram para trás. O próprio Woody, debicando constantemente em Ingmar Bergman, Bob Hope ou Dostoiévski, representava bem esse "melting pot" novaiorquino onde nada se perde porque tudo se transforma.

"Blue Jasmine" perde tudo por preguiça. Os diálogos são tão maus --previsíveis, baços, a lembrar as piores novelas-- que é difícil acreditar que foram escritos por um dos melhores prosadores americanos vivos. Alguns beneméritos dirão que o problema está no gênero: Woody funciona melhor em comédia, não em drama.

Errado. Woody Allen funcionava bem em ambos. "Annie Hall" ou "Zelig" estão na melhor estante do meu coração. Mas que saudades dos diálogos de "Setembro" ou "Crimes e Pecados", capazes de fazer estremecer a massa cinzenta com algumas verdades dolorosas sobre a nossa irremediável condição terrena.

Em "Blue Jasmine", adivinhamos cada frase antes mesmo de ser dita. O humor é inexistente. E em nenhum momento acreditamos na pergunta fundamental da história: alguém que perde a alma por dinheiro será capaz de a recuperar quando o dinheiro desaparece? Sabemos que não. E o moralismo vulgar da pergunta está ao nível de um Michael Moore, não de um Woody Allen.

Depois de Londres, Barcelona ou Roma, os aficionados imploraram a Woody Allen para que voltasse à sua ilha privada, Manhattan. Ele voltou. Mas voltou como certos turistas depois de uma longa viagem pelo exterior: esgotado e desencantado.

Para o ano há mais? Talvez. Mas a hipótese de termos um Woody Allen em plena velhice produzindo filmes atrás de filmes como os alienados produzem potes de cerâmica no asilo é demasiado dolorosa para ser verdade.


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